sábado, setembro 13, 2008

Setenta anos atrás

Hoje bateu-me à porta um homem que usava uma t-shirt verde com umas letras brancas a dizerem qualquer coisa de que não me lembro, e uma espécie de boina na cabeça. Trazia na mão uma máquina fotográfica digital que eu a princípio confundi com aquelas manigâncias com que os homens costumam vir fazer a leitura dos contadores. Tinha cabelos brancos e parece-me que usava óculos. Isto é estranho, porque a minha memória visual até costuma ser boa, mas não me consigo recordar se ele usava óculos ou não. Recordo o brilho dos olhos. Um brilho claro e ao mesmo tempo com algumas sombras. Perguntou-me se podia tirar umas fotografias do exterior da casa, e eu perguntei-lhe porquê. Então ele disse-me que tinha nascido nesta casa, há setenta anos atrás. Disse-me que ainda há uns poucos de vizinhos de que ainda se recorda. Depois, em mil novecentos e cinquenta e qualquer coisa, mudou-se. Perguntou-me se a casa-de-banho ainda era ao cimo das escadas, se ainda havia os dois quartos e as duas salas. Eu disse-lhe que a parede das salas tinha sido derrubada, portanto agora há apenas uma. E cozinha ainda é lá ao fundo? Sim. Perguntou pelo quintal, se ainda está na mesma. Respondi que não sabia, talvez. E ainda há aquela parede horrível ao fundo? Presumo que seja o muro de pedra escura, quase invisível por causa da trepadeira que o tinha engolido completamente, mas que agora foi desbastada quando limpámos a selva em que se tinha tornado aquele pequeno pedaço de terra. Respondi que sim, sem saber contudo, ao que ele se referia ao certo. Ele sorria depois de cada pergunta, e ficava a aguardar a resposta com uma curiosidade infantil. Não me pediu para entrar, nem eu tão pouco o convidei. Além de estar a meio da limpeza da sala, com a mesa e as cadeiras e os estendais da roupa todos chegados para um canto, e metade da alcatifa molhada com uma daquelas espumas potentes que prometem milagres na limpeza (mas que nunca os cumprem), tive receio de deixar o homem entrar. Sei lá, podia ser algum maluco a inventar aquela estória toda sabe-se lá para quê! Ele agradeceu cordialmente e foi-se embora, mas eu ainda o vi por entre as cortinhas, com a máquina na mão, no meio da estrada, a fotografar a fachada. Parecia-me, a cada minuto que passava, cada vez mais inofensivo. Porque é que não o convidei para vir cá noutro dia, tomar chá, com a mulher (se é que tinha mulher) e, se quisesse, os filhos e os netos (se é que existem)? Pus-me a imaginar aquele alvoroço que é regressar aos locais da infância onde nunca mais fomos. Pus-me a imaginar a vontade que aquele homem teria de voltar a entrar nesta casa depois de tantos anos, e no facto de nem sequer ter sugerido isso. Provavelmente, não quis ser intrometido. Provavelmente, é sinal de que seria de facto inofensivo.

1 comentário:

LP disse...

Esta descrição está fantástica! Que momento único!