sexta-feira, novembro 21, 2008

Ca(n)saço (sem éne e sem cedilha)

Deixava cair o casaco cansado pelos ombros cansados. Abrigava-se nele como numa segunda pele. Às vezes, tinha a estranha impressão de que o casaco mais não era que um prolongamento do seu estado de espírito - um tecido cinzento, ligeiramente rugoso, que causava um incómodo desconcertante na pele, sem contudo a irritar demasiado. Isto do lado de fora, evidentemente. Do lado de dentro tinha um daqueles forros de cetim que nos arrefecem a alma no contacto frio e deslizante, silencioso, de serpente. Usava aquele casaco com uma abnegação lastimosa, escorregadia; quase tropeçava naquele manto fúnebre que lhe cobria o corpo com a densidade e a gravidade de um nevoeiro. A gravidade, porém, não provinha das nuvens baixas, de textura etérea; antes dos olhares agudos e penetrantes das sentinelas sinistras que lhe vigiavam constantemente os passos, numa reprovação muda traçada a carvão nas íris de águas pardacentas e estagnadas, a cheirar a enxofre. Não, não tinha anjos de asas translúcidas a velar-lhe os sonhos; nem sequer sonhava, o sono uma muda e árida planície gelada. Apenas aquelas criaturas, de olhar afiado, gestos acutilantes, encostadas aos muros da consciência, o corpo recto e erecto denunciador de uma presença constante. Não, não se sentavam nos seus ombros; os seus ombros eram um território demasiado íntimo para a sua austeridade. Aliás, nos seus ombros, apenas aquele casaco assentava como uma luva. Aquele casaco, cansado, cinzento, longo e inóspito como um deserto, que era a sua segunda pele.

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