terça-feira, dezembro 16, 2008

O escritor distraído

O escritor sentou-se à mesa e olhou o ecrã do computador. Depois coçou a barba num gesto lento. Distraídos, os dedos preparavam-se para afagar as teclas. Era dessa distracção que lhe saíam as frases que seriam, depois, elogiadas pela crítica. O escritor era um homem de meia idade e era bem sucedido. Nem ele saberia explicar porquê. Talvez porque escrevesse por distracção. Ou a distracção fosse apenas outro nome para a sua técnica imbatível. A maioria dos seus leitores eram mulheres. Aliás, hoje em dia, os homens lêem apenas jornais, revistas de negócios e manuais de instrução. Sempre que se encontrava com outros escritores surgiam, invariavelmente, novas anedotas sobre este facto, cada vez mais óbvio, da iliteracia masculina. Ora ele, de mulheres, não entendia nada. A maioria dos homens também não, mas faz esforços consideráveis no sentido contrário. Alguns passam uma vida inteira nesse esforço gorado. Outros, convencem-se ou gostam de convencer que, finalmente, chegaram lá. Ele não. Compreender as mulheres era, aos seus olhos, uma empreitada semelhante a resolver o enigma da esfinge, desvendar o segredo das pirâmides ou conhecer os mistérios insondáveis do universo. Portanto, não entendia as mulheres, nem procurava entender. Mas gostava de escrever sobre elas, não para as entender, mas para as retratar, como se as pintasse numa tela. Talvez fosse esse o segredo do seu sucesso, pensava às vezes. As mulheres gostam de ler homens que assumem a sua ignorância sobre o universo feminino. Ele não acreditava que existisse um universo feminino e outro masculino, mas para o caso isso também não interessava. O que interessava é que as mulheres gostavam de lê-lo, e liam-no, e graças a isso era um escritor bem sucedido. Tinha quase a certeza de que se fosse mulher, nenhuma perderia tempo a ler os seus livros. Às vezes imaginava levar essa dúvida às últimas consequências, e assinar o seu próximo romance com um pseudónimo feminino. Decerto não se esgotaria a primeira edição. As mulheres não gostam de ler mulheres que escrevam com elegância e delicadeza. Preferem as que escrevem com palavrões. Ele nunca escrevia palavrões, a não ser quando saíam da boca de algum personagem. Mas mesmo assim era raro. É claro que um homem que escreve palavrões já não é bem visto, aos olhos das mulheres que o lêem, como o são as mulheres que os escrevem. Os palavrões, nos últimos tempos, têm-se revelado, aliás, uma ferramenta de índole ao mesmo tempo carismático e compulsivo, na escrita de algumas mulheres. Uma ferramenta poderosa e eficaz. O que aos homens assentaria como ordinarice e falta de originalidade, às mulheres assenta como uma luva. Isto aos olhos das mulheres e dos poucos homens que ainda lêem.
Há pouco mais de duas décadas, quando ainda era jovem e ainda não era escritor, tropeçara por acaso, no meio de uma multidão de gente feliz que festejava a chegada do ano novo no areal de copacabana, numa actriz brasileira de renome. Nessa altura ela era uma mulher de meia idade. Uma diva do espectáculo e das novelas da globo, de porte majestoso. Estendera-lhe a mão para cumprimentá-lo. «Gosto muito de seus livros», dissera. Ele ainda não era escritor. Tentou desfazer o equívoco, mas ela ignorara-o, «Sempre tímido, meu rapaz...», sorrira-lhe, piscando o olho. Depois fizera-lhe sinal para que aproximasse o ouvido da sua boca. Ele obedecera, e sentira o bafo pesado de uma mistura de bebidas muito alcóolicas. Ouviu-lhe as palavras, enquanto sentia o hálito dela, morno, a escorrer-lhe na pele arrepiada do pescoço: «Você sabe como escrever para uma mulher.» Dissera aquilo como se dissesse: «Você sabe como despir uma mulher.» Ele, pelo menos, sentiu o mesmo aperto no peito que sentiria se ela o tivesse dito. Corou. Ela continuava a soprar-lhe ao ouvido: «Sabe porquê? Porque você não entende nada de mulher, meu querido. E ainda bem. As mulheres não querem ser entendidas, sabe? Esse é um dos grandes equívocos de sempre. As mulheres querem é ser bem fodidas.» Soltara uma gargalhada áspera que quase o ensurdecera. Rira também, nervoso. Ela continuava, imparável: «As mulheres que querem ser compreendidas procuram um analista, não acha?» Ele sorrira, e resolvera acompanhá-la, o nervoso miudinho a picar-lhe o peito: «E então aquelas que acabam se apaixonando pelo analista?», «Aí, meu caro», a voz dela ficara mais funda, «é porque não encontraram um bom analista...» Nova série de gargalhadas. Ele sentia-se mais à vontade: «Você acha mesmo? Há assim tanto analista incompetente por aí?», «É o que mais há, meu rapaz. Para alegria das mulheres.»
Já não se lembrava bem como terminara a conversa. Lembrava-se do cheiro do mar a boiar no calor da noite, da luz e do estrondo dos foguetes a riscar o negro do céu, da gritaria das pessoas em volta, da luz de muitas velas acesas e das preces a yemanjá, rogadas num misto de euforia e redenção. O seu olhar perdera-se noutra direcção, e quando se voltara, ela já não estava lá. Sumira. Exactamente dois anos depois, morrera num naufrágio nas águas da baía de guanabara, a bordo de um grande barco onde se celebrava mais um reveillon.
Alguns anos mais tarde, ele publicaria o seu primeiro livro.

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