sexta-feira, dezembro 26, 2008

Natal

O natal, pois. Aquela época do ano em que nos esquecemos de nós e da lógica assombrosa que nos polvilhava os anos esquecidos da juventude, aqueles que se situam algures entre a magia e a crença ingénua da infância, e a relatividade da idade mais ou menos madura. A relatividade, a mesma que aprendemos como teoria nos bancos da escola, e que aquele cientista de cabelos em pé e nome esquisito, que de tão pronunciável se tornou familiar, dedicou grande parte da existência a determinar e demonstrar com esmero e dedicação; aquele esmero e aquela dedicação de que só mesmo os malucos são capazes, ou ao menos aquilo que julgamos que impregna o espítito e a vontade de um maluco (ou de um génio, tanto faz). A mesma relatividade que só quando crescemos, ou amadurecemos, ou envelhecemos, como queiram, se nos apresenta, não já como teoria, mas prática, aquela prática casual que nos faz envergar as roupas vermelhas e decadentes de pai natal e, se não a descer pela chaminé, pelo menos a perder parte da noite a embrulhar presentes com a mesma determinação com que antes duvidávamos da existência de deus. De deus ou de qualquer credo, crença ou conjunto de valores que nos parecessem perigosamente afastados daquilo que acreditávamos ser a realidade. Hoje despimo-nos de preconceitos e aqui estamos a embrulhar prendas, na boca da noite, a fita-cola a teimar em esconder-nos a ponta, e os dedos quase a tropeçarem no sono dos justos que já nos ameaça ensombrar as pálpebras. Mas não, não desistimos, e tudo por amor a essa coisa que já desprezámos e que hoje guardamos na caixinha dos tesouros mais secretos, aquela pedra preciosa que dá pelo nome de magia. Os miúdos já nem acrreditam no pai natal, a verdade é que também pouco fizémos para lhe alimentar a fantasia e mantê-los na ilusão, conscientes de que ela, a ilusão, só dura enquanto é pura, e a sua pureza desvanece-se quando começamos a duvidar. Mas hoje já sabemos que não é a dúvida que a mata, mas essa agonia lenta que toma conta de nós quando se nos empobrece o espírito e a razão. Por isso não temos medo das dúvidas e recebemo-las como mais uma benção. Afinal, não fossem elas, as dúvidas, e não estaríamos aqui hoje, no meio de embrulhos por fazer, os minutos lentos a escorrerem pelas paredes do quarto, e um formigueiro na barriga que não sabemos bem de onde vem. Talvez de muito longe, daqueles anos em que, sem acreditar no pai natal, esperávamos por ele à meia noite do dia 24 como quem espera um milagre que se renovava todos os anos. O mesmo milagre que nos fazia ir para a muralha nos dias de nevoeiro apanhar o musgo agarrado às rochas, encharcado de humidade, e construir com ele uma paisagem de sonho, com as peças do presépio já partidas, ao burro faltavam-lhe as orelhas, ao menino jesus um braço, um dos reis magos tinha-se evaporado do camelo, a maria já não tinha mãos e a josé faltava-lhe um pé. Depois havia um moinho que tinha de se apoiar num bocado mais alto de musgo, porque senão caía para o lado, e uma ponte partida que se montava como se fosse um puzzle, as três peças encaixadas umas nas outras por cima de um bocado de espelho ou de uma prata que fazia as vezes de lago. A algumas ovelhas faltavam-lhe a cabeça, a outras uma pata ou os quartos traseiros, mas, mal ou bem, todas lá se iam aguentando em pé. O pastor, coitado, é que não tinha cara. Mas nem nos passava pela cabeça pedir para se comprarem outras peças, porque aquelas tinham qualquer coisa indizível que as tornava únicas e insubstituíveis. As luzes da árvore de natal, uma braçada de pinheiro apanhado na serra dossa, ainda a cheirar ao coração da terra, com aquele frio gelado na ponta das agulhas que nos roçavam os dedos pequeninos, e o brilho que os enfeites teciam no escuro, completavam aquele pequeno milagre que nos nascia no coração, aquele a que agora voltamos a dar vida, enquanto uma montanha de embrulhos em papel fantasia de todas as cores se acumula na cama, ao mesmo tempo que os minutos passam e as recordações nos lavam aquela angústia daninha de estarmos a boicotar o sonho mais antigo da nossa velha infância.

1 comentário:

Lelena Lucas disse...

Curioso, parece que nos visitamos hoje no mesmo momento.
Boas energias também pra você e para os seus.