domingo, fevereiro 08, 2009

Navegar é preciso

Ela estava farta. Farta dos dias, dos minutos, das horas, dos segundos. Farta das noites sem dormir. Farta dos barbitúricos. Farta da vida. Farta de tropeçar. Farta dos braços que a fingiam ajudar. Farta de chorar. Farta de gritar sem que ninguém a ouvisse. Farta daquele espelho onde se olhava todas as manhãs, e sempre lhe devolvia um desconhecido. O seu rosto.
Farta farta farta.
Um dia não aguentou mais e partiu o espelho.
E gritou furiosa para os cacos:
«Estás enganado! As minhas palavras não são o reflexo das tuas, nem nunca foram! As minhas palavras não são de vidro, são de água! É o mar para onde o rio das tuas me leva, é esse mar que vive nelas. Mas o que entendes tu disso?»
Ela não entendia. Ainda lhe restava, porém, uma réstia de lucidez.
«Devo estar louca, para estar para aqui a falar contigo. Os meus próprios cacos...»
Foi buscar uma vassoura para apanhar os cacos.
E, enquanto varria, veio-lhe à boca o fio de prata da melodia daquelas palavras
«Navegar é preciso...»
de uma velha canção, essa sim, o reflexo nítido e cansado da sua vida
«... viver não é preciso»
nessa noite adormeceu sem dar por isso.

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