sábado, fevereiro 14, 2009

Ruminólogo*

«O que é que se passa contigo?»
«Não sei.»
«Tens sempre esta capacidade espantosa de introspecção?»
«Vai chatear outro.»
«Estás bem disposta hoje, nota-se. Deixa-me adivinhar: não consegues reunir os cacos...»
«Estás a falar do quê?»
«De ti.»
«De mim?»
«Sim, dos teus cacos. Já me senti assim muitas vezes, por isso sei o que sentes. Porque é que não aproveitas isso da melhor maneira? Arranja um personagem e escreve!»
«Escrevo sobre o quê?»
«Sobre ti, o que é que havia de ser? Sobre os teus cacos. É sempre assim: arranjamos personagens para podermos escrever sobre nós. E, às vezes, os personagens acabam a escrever por nós.»
«Cala-te. Não percebes nada.»
«O que é que eu não percebo?»
«Não percebes nada de nada! Tens a mania que sabes o que se passa comigo: não sabes nada!»
«Bem, ao menos tento perceber, não fico aí especada como tu à espera que as coisas me caiam do céu...»
«E quem é que disse que estou à espera de alguma coisa?»
«Nesse caso, ainda é pior: mal de quem já não espera por nada...»
«Tens a cabeça cheia de frases feitas!»
«E tu detestas frases feitas, já sei. Olha, vou dar-te um conselho: esquece-te um bocadinho de ti e ouve mais os outros.»
«Tu sabes lá o que estás a dizer!»
«Posso não saber, posso até nem acertar, mas tento. Não desisto. Arrisco. Não és tu que dizes que não devemos ter medo de errar? E na hora, onde é que estás?»
«Vai à merda...»
«Quando nos faltam os argumentos, atiramos pedras.»
«Eu não preciso de argumentar. Nem desta conversa. Não preciso de provar nada a mim própria, muito menos a ninguém. O que é que queres que eu diga, afinal?»
«Eu não quero que digas nada. Os cacos são teus.»
«Mas do que é que estás a falar, porra? Quais cacos?»
«Os teus! Pensas que não vejo?»
«Ok, não vou discutir aquilo que vês ou deixas de ver. Partindo do princípio que tens razão: o que é que pretendes, afinal? Ajudar-me? Achas que assim me ajudas alguma coisa?»
«Estou a tentar, já disse...»
«Pois pára de tentar! Não preciso das tuas tentativas para nada, nem dessa tua estúpida mania de ajudar os outros!»
«És muito egocêntrica, é o que é. Estás sempre mergulhada no teu umbigo...»
«Ao menos não chateio ninguém.»
«O problema é mesmo esse.»
«Ai sim? E porquê?»
«Devias chatear mais os outros. Mostrar-lhes quem és. Refilar. Exigir. Argumentar. Obrigá-los a olhar para ti. A ver-te. Enxergar-te. Devas gritar mais alto aquilo que és. Não te estás sempre a queixar que ninguém se importa contigo? Que ninguém te ouve?»
«E o que sabes tu do que me falta?»
«Não sejas parva. Há anos que te conheço e que oiço o teu silêncio. Sei muito bem o que ele diz. O silêncio diz sempre alguma coisa, sabias?»
«És especialista em interpretar silêncios, queres ver?»
«Não sou especialista de nada. Apenas tenho os olhos abertos.»
«E o que vês, então?»
«Já disse: os teus cacos. Vejo-te apanhá-los todos os dias, e deitá-los no caixote do lixo. Um verdadeiro desperdício.»
«E que sugeres?»
«Também já disse: arranja um personagem. Dá-lhe os teus cacos. Ele ou ela saberá o que fazer com eles. Não confias nas tuas personagens?»
«...»
«Já sei, não confias nem sequer em ti mesma, não é? Sim, eu sei. Achas que nunca ninguém vai entender. Nunca vão reparar em ti. Nem ouvir o que tens a dizer. Para quê, então? Pois eu digo-te: não faças caso. Não te cales. Escreve. Não deixes que te ignorem.»
«Eu dantes também tinha a a mania que sabia tudo dos outros e de mim própria. Achava que tinha um olho especial que me permitia ver mais que o comum dos mortais. Achava que era diferente. Achava que era mais e melhor que muitos...»
«Achas que é isso que sou?»
«Não o admites, mas és. No fundo, estás sempre a julgar. Pensas que sabes o que é melhor para os outros...»
«E quem é que não está? Quem é que não julga? Quem é que não tece considerações sobre os outros? A maioria das pessoas arranja com muito mais facilidade soluções para os problemas alheios do que para os seus... Sem falar que enxerga muito melhor os defeitos dos outros do que quando se vê ao espelho...»
«Pois eu sou exactamente ao contrário. Se não o sabias, é porque não me conheces.»
«Ah! Ah! Claro que sei. E sei também que te convenceste disso para poderes alimentar o teu ego sem culpa!»
«O que é que queres dizer com isso?»
«Que isso que pensas que és é uma treta. No fundo, lá no fundo, achas-te melhor que todos.»
«Como é que podes afirmar uma coisa dessas???»
«Porque estou dentro de ti. Porque sou uma criação tua. Já te esqueceste? Deste-me voz para poderes mandar os teus cacos ao ar, não foi? Levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima? Só que tu ficas-te sempre na sacudidela. Não tens coragem de...»
«Cala-te! És uma besta! Não percebes nada de nada!»
«Já sei: não percebo nada de ti. Azar. Tem mais cuidado da próxima vez que me criares. Faz-me um pouco mais hipócrita. Tu, com a mania das verdades, não suportas que te atirem as verdades à cara. Para a próxima vez, inventa-me assim daquelas gajas que detestas: daquelas que vendem a amizade tal como as putas vendem o corpo. Tudo uma questão de troca: toma lá, dá cá, e desaparece.»
«És uma besta.»
«Tu lá sabes.»

* de monólogo + ruminação

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