sábado, maio 30, 2009

Uma meia meia feita

Sabia que já era tarde; e no entanto, ainda era dia. Ou melhor: a tarde ainda se arrastava, mansa, na luminosidade das horas, quase a fechar os olhos. Dantes, passajavam-se as meias, com esmero e afinco; com determinação, paciência, labor trôpego dos dedos ritmados; com amor, dedicação, alucinação exausta dos dedos doridos e febris. O dedal a anular a dor do bico da agulha; a transformá-la numa coisa metálica e fria, à dor; numa pressão indolor e cinzenta, compacta, na cabeça do dedo. Hoje olhamos os buracos das meias e lembramo-nos daquela sensação do dedo a entrar pelo buraco; a fazer crescer o buraco; a comichão e o incómodo no dedo. E num relâmpago revemos o doloroso e luminoso ardor das mãos; o laborioso e incansável afã dos dedos, o brilho reluzente do dedal. Memórias, apenas. Hoje mandamos as meias para o lixo. Quem é que se vai preocupar a remendá-las? Passajá-las? Uma arte ancestral em vias de extinção? Delírios de outros tempos?

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