terça-feira, junho 16, 2009

A morte dentro da carroça de vidro

O sol brilha, e a morte chegou. Vem dentro de um caixão de madeira envernizada, coberto de rosas vermelhas e do verde escuro das folhas, visíveis através do vidro trabalhado da carruagem que lhes serve de último transporte. A carruagem é uma caixa de vidro rectangular cujas arestas estão rodeadas por uma orla de ferro preto, forjado em pequenos desenhos harmoniosos. As rodas são de madeira preta, altas, elegantes, de raios concêntricos. No lugar do cocheiro está um homem sentado, com a cara vermelha como um tomate, os cabelos grisalhos encimados por um chapéu preto, alto, as mãos de luvas pretas segurando um chicote, e uma casaca também preta, de botões grandes e prateados, a cobri-lo como um manto até aos pés. Os cavalos, pretos, agitados, resfolegam ao som dos cascos no chão, pequenas pancadas secas misturadas ao vento da respiração, as cabeças encimadas por um penacho preto, as palas e os arreios reflectindo a luz do sol no contraste da napa escura enfeitada com estreitas linhas prateadas. As selas igualmente escuras, ostentando o brilho da prata, e um manto preto, exausto, com um símbolo roxo, a cobrir-lhes os quartos traseiros. À frente da carroça está um carro funerário, com a porta da bagageira aberta, por onde outro homem, igualmente vestido de preto, camisa branca, chapéu alto na cabeça, vai depositando ramos de flores de cores vivas e ao mesmo tempo mortas. São vários os homens de casacos e chapéus pretos que deambulam para cá e para lá, numa dança melancólica. Espera, há um que é uma mulher. Tem o cabelo loiro apanhado e o azul dos olhos evidencia o branco da camisa. Está a sorrir e a falar para um dos homens. Os outros homens também falam uns com os outros, como se conversassem casualmente. O cocheiro, de rosto cada vez mais vermelho, inclina-se ligeiramente para baixo para ouvir o que o outro lhe diz. À porta de casa estão os filhos, as noras, os netos e as netas, talvez alguma prima ou irmã ou amiga. Era velha, a mulher que morreu. Os homens estão de casaco preto e camisa grená ou branca. As mulheres também de camisas brancas e saias pretas. Vejo uns sapatos de fivela, pretos, engraxados, aproximarem-se de um dos cavalos. O braço nú eleva-se e a mão faz festas no pescoço do animal. Ela fica ali, com os cabelos cada vez mais claros à luz do sol, a acariciar o pêlo do cavalo. A pele dela é jovem e fresca, como a água de uma fonte. O sorriso também. As flores continuam a chegar, em mãos e braços atarefados, em pequenos passos que desenham círculos indefinidos no chão. Muitas rosas vermelhas, pequenas e tímidas manchas de sangue na brancura das camisas. Os braços nus das mulheres iluminam por momentos o luto dos casacos, das lapelas, dos chapéus, dos cavalos, da carroça e dos carros. Por fim entram todos para dentro das duas limusinas pretas que aguardavam, paradas, e ouve-se o ruído de portas a fecharem-se, de motores a trabalhar e dos cascos dos cavalos a iniciar a marcha. E vai-se embora, a morte, dentro da carroça de vidro. Dela fica apenas, durante breves instantes, o eco das marteladas dos cascos dos cavalos no negro do alcatrão.

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