quinta-feira, setembro 17, 2009

Caixilhos brancos

A casa onde vivia a velha que morreu está a ser restaurada. Mudaram as janelas. Os caixilhos novos, brancos, brilham à luz do sol. A sua brancura encandeia. Todo o dia se ouvem marteladas vindas do interior da casa. As vozes dos homens que martelam. O motor da carrinha a trabalhar, de manhãzinha, e ao fim da tarde, quando se vão embora.
Ontem quando fechei a porta atrás de mim os tais caixilhos brancos entraram-me pelos olhos dentro e feriram-me a retina. Tanto, que senti as lágrimas a quererem soltar-se, mituradas com o lume de uma faca no peito. Uma dor cortante e sem remédio. Os caixilhos são demasiado brancos. Os outros estavam meio amarelados, acredito que um dia, já há muito tempo, quando a velha que morreu naquela casa era nova, tenham sido brancos, assim de uma brancura feroz, como estes. Mas mais feroz ainda era o grito das palavras raivosas que me cortavam por dentro o peito. Um grito que morria num silêncio de pedra. Cada aresta uma lâmina. Pensei na velha que morreu. Vi-a à minha frente, dentro da minha cabeça, no meu peito. Vi-lhe o andar cansado, as costas curvadas. Vi a ambulância parada à porta, os filhos a entrarem e a saírem, tantas vezes, tantas vezes que aconteceu e nem sei o quê, talvez uma dor, um desmaio, um susto, e lá vinha a ambulância. De todas as vezes, aquela dúvida e aquele temor, será que foi desta que morreu a velha? Nunca era. Foi na carroça de vidro que a vi chegar. à morte. Sem ambulâncias, sem aparatos. Vi a dor dos filhos. E hoje, vejo os homens a trabalhar com afinco. Vejo os caixilhos brancos. Devem ir vender a casa. Ou alugá-la. Para isso terão de fazer obras, claro. Remodelar. Ninguém quer uma casa com caixilhos amarelados pelo tempo. Para a velha chegavam bem. E talvez até ela nem se importasse. Talvez fosse daquelas velhas que nunca querem gastar dinheiro, não, filhos, eu estou bem assim, não preciso de nada. Talvez. Mas dói-me tanto, naquele momento, ver toda aquela brancura. E pensar que ela já não está cá, para ver. Pensar na casa, remodelada, decorada a gosto, tudo uma beleza, para se vender. A casa para vender, apenas à espera que a velha morresse. Tantos velhos vivendo em casas que depois serão vendidas mal eles morrerem. Remodeladas, redecoradas, vendidas. Enquanto estão vivos, os velhos, as casas podem estar a apodrecer, os caixilhos amarelos do tempo, ninguém se importa com isso. Só depois, quando é preciso fazer dinheiro. Foi esta faca que senti no peito. E tive vontade de chorar. Mesmo assim, ela tinha sorte. Os filhos e os netos vinham vê-la todos os dias.

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