sexta-feira, novembro 20, 2009

Sopa juliana

Faço sopa como quem passaja as meias ou passa o espanador pelas prateleiras ou deixa escorregar os olhos para o abismo dos céus sem dar por isso: sem querer, sem pensar, sem sequer sentir. Às vezes a faca escorrega e acorda-me daquele ruminar de sonhos com uma dor pequenina e aguda num dedo, e então tudo se desenha concreto ao meu redor e eu tenho de cerrar os dentes para não deixar escapar a dor de quase dar em doida com a sucessão de gestos repetitivos em que se tornou a minha vida. Imagino-me a arrumar as mochilas dos miúdos, daqui a pouco: fatos de banho, toalhas, toucas, óculos para mergulhar, chinelos para não apanharmos fungos nos pés. Gel de banho, champô. Hoje é dia de natação e só isso já me alivia o peito. Acho que os médicos deviam prescrever mergulhos e braçadas para as crises de angústia. Também para a raiva. Não, não a doença com o nome raiva, mas a outra, a raiva que nos assalta de súbito sem sabermos porquê, e nos dá vontade de atirar alguém à linha do comboio. O quê, nunca sentiram vontade de matar alguém? Fiquem sabendo, pois, que o que vos tem livrado desse impulso mórbido não é a vossa veia angelical ou bondade intrínseca, mas sim uma eficiente e sólida mordaça, uma auto-censura determinante.
Deixei o post a meio e agora já não me lembro do que ia escrever a seguir. Tanto, que enveredei por outro caminho. Com a vida passa-se a mesma coisa: vamos, determinados, numa dada direcção, e quando damos por nós distraímo-nos e estamos a andar em sentido contrário. Ou para leste, ou para oeste. Sei lá.
Lembro-me que queria falar de mim, da minha vontade de escrever um livro, das minhas dúvidas, dos meus temores, da minha paralisia e dos meus ossos doridos, sem ninguém perceber que estava a falar disso. Lembro-me de querer usar as palavras retirando-lhes o sentido e espremendo-lhes o sumo que só os sentidos mais primitivos conseguem beber. Eu às vezes queria usar as palavras como quem escreve música. Esquecer as metáforas e as orações e deixar-me levar apenas pelo som, pela melodia, pelo ritmo, pela cor. Não querer dizer nada com elas, não querer dar nenhum sentido ao que escrevo; apenas deixar fluir a beleza que habita a voz, como uma ave graciosa num bailado lento de asas ao vento.

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