sábado, janeiro 23, 2010

Bocados de sonhos enredados aos pés

Tinha muitas vezes aquele sonho. Um sonho em que, de dentro de um roupeiro, ia tirando pequenos tesouros multicores, festivos, feitos de tecidos leves e estampados. Exatamente como um ilusionista tirando coelhos da cartola: saias, vestidos, camisas, túnicas, tudo lindo de morrer. Só nunca encontrava calças, não sabia porquê. Teria isso a ver com a sua aversão a usar calças, lá muito ao fundo do tempo, de que já mal se lembrava? Não sabia. Agora, porém, o que se apresentava na sua frente era o oposto do sonho. A amiga tinha-lhe dito, tudo, tudo o que já não usas. Aquilo que deixamos de usar entrelaça-se-nos aos braços e às pernas, impedindo-nos de andar. A vida fica parada e estagnada, a energia atrofiada, paralizada. Quem é que hoje em dia não anseia por andar para a frente, subir, ascender? Pior que morrer é ficar parado. À espera do comboio, na paragem do autocarro. Agarrou num cabide de onde pendia um vestido creme, comprido. Nunca usara saias curtas, sempre teimando em esconder as pernas. As collants provocavam-lhe uma comichão horrível que durante anos aguentara, sorridente, estoicamente. Suspirou. Aquele era o vestido que usara no casamento da irmã, há dez anos atrás. Nesse dia sentira o olhar invejoso das outras mulheres no recorte das suas ancas. Era mesmo uma coisa do outro mundo, portanto. Voltou a pendurar o cabide no varão. Como é que se podia livrar assim da inveja das mulheres, essa sensação docemente incrédula no céu da boca? Pegou noutro cabide. Uma camisola de verão, cores leves, meio transparente, onde já não cabia. Viu o sol e a praia e os cabelos bateram-lhe nos olhos e ouviu gritos de gaivotas e até sentiu o arrepio da brisa a beijar a pele coberta de sal. Novo suspiro. Não, nunca conseguiria deitar os sonhos fora. Estava condenada a arrastá-los para sempre, enredados nos tornozelos. A sua vida nunca iria ser sempre em frente, sempre a subir, em ascenção direta sabe-se lá para onde.

2 comentários:

ana disse...

Muito bonito. Bom texto. :)

papu disse...

obrigada :)