quarta-feira, janeiro 13, 2010

Quarta feira de cinzas

Tinha de ser hoje. Quarta feira.
Passou o dedo pelo fio da lâmina. Sentiu um arrepio.
Teria de ser rápido e preciso, o golpe. Os golpes.
A primeira a chegar era a irmã, vinda da escola. Essa não daria problemas, três anos mais nova, quase ainda uma criança. A pele dela era mole, tão mole, sabia disso porque costumava fazer-lhe cócegas, muitas cócegas, que lhe provocavam infindáveis ataques de riso. A ambos.
A mãe chegava por volta das seis. A mãe era uma mulher pequena, já a ultrapassara em coisa de dois ou três centímetros. Com ela teria de ter mais cuidado, mais força.
O padrasto, o último a chegar a casa, por volta das oito, esse sim, seria um bico de obra. Um homem alto e bem constituído, com braços de atleta.
Esse seria o verdadeiro desafio. Podia oferecer resistência, podia desarmá-lo. Tudo podia acontecer.
Mas o que é a vida sem um pouco de risco?
Já pensara em tudo. Todos os pormenores. O melhor seria surpreendê-los logo à chegada, quando ainda guardassem as chaves no bolso ou na mala, a porta acabada de fechar. Era importante que a porta estivesse fechada. Ele estaria atrás dela, da porta, com a ponta e mola pronta. A mesma que lhe arrepiava o frio da lâmina na ponta do dedo.
Um primeiro golpe abaixo das costelas, do lado direito, o lado do fígado. Sem lhes dar tempo sequer de perceber o que se passava. Quando se dobrassem para a frente, caindo-lhe nos braços, um segundo golpe certeiro. No coração.
Havia o problema do sangue. Seria preciso ser rápido. Um balde cheio de água com lixívia já preparado, e os panos, os inúmeros panos para limpar o chão, cada um de sua cor.
Arrastaria cada corpo até à cama, onde acabariam de sangrar. O sangue na cama não era problema. O rasto é que tinha de desaparecer.
Talvez apenas estranhassem o cheiro a lixívia, quando entrassem em casa. De resto, nada.
Nessa noite jantaria sozinho, os restos da véspera. Era só aquecer no microondas. Depois veria televisão até às onze, hora de ir para a cama. Antes de se deitar, daria um beijo de boa noite a cada um e aconchegaria o calor dos lençóis húmidos e escurecidos de sangue aos rostos lívidos.
No dia seguinte seria quinta feira, folga da empregada. Era por isso que tinha de ser numa quarta feira. Além disso, às quartas não tinha aulas à tarde e a irmã tinha.
Saltaria da cama às sete, como habitualmente. Faria tudo igual, o duche da manhã, o pequeno almoço, escovar os dentes, lavar a cara, e pela primeira vez faria a barba. Com a gilete do padrasto.
Depois iria à escola como sempre. Ninguém daria por nada. Se perguntassem pela irmã, diria que estava doente.
Às quintas, depois das aulas, tinha natação. Hora e meia a nadar. Cerca de quatro, cinco quilómetros. Sem parar. O suficiente para o deixar exausto.
Quando chegasse a casa, lá para as sete, o silêncio seria o único a recebê-lo.
Fritaria um ovo, umas salsichas, umas fatias de bacon.
Talvez por essa altura os corpos começassem a cheirar mal.
Talvez a porteira tocasse à campainha estranhando não ver o lixo à porta. Não se podia esquecer do lixo. Mas talvez ela tocasse à mesma, estranhando o silêncio pesado.
Desde antes de ontem que não vejo a sua mãe, Carlinhos. Está tudo bem?
Teria de sorrir, está tudo bem, é a minha irmã que está adoentada, não se preocupe.
No dia seguinte, no caminho para a escola, depois de se ter barbeado a segunda vez na vida, atirá-la-ia, à vida, para baixo do 33, precisamente no momento em que, depois da curva, acelera de novo.
Tinha de ser naquele exacto segundo, para que o condutor não tivesse tempo de travar.

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