quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Habla con ellas

Talvez tenha vindo parar aqui por acaso. Onde estou? Na terceira ala da direita, Neurologia. Não reparou no letreiro por cima da porta? Aqui só atendemos pessoas com cartão da caixa. E quem não tiver cartão? Tem de aguardar a sua vez. Tire uma senha e aguarde na sala de espera, primeira porta à esquerda. Mas eu não pedi para vir... Nós sabemos. Mas nada podemos fazer. Temos muita pena. Pena? Que disparate. Apenas preciso de xarope para a garganta. Sabe, passei a noite toda... Xarope para a garganta? Já podia ter dito! A farmácia fica lá fora, sai por essa porta, corta à direita e é sempre em frente. Passei a noite toda a ouvir vozes. Estava numa sala escura, muito escura, não havia portas nem janelas. E escorriam ecos pelas paredes... A farmácia é ao fundo, depois de cortar à direita, sempre em frente, não há que enganar. Já podia ter dito. Passei por lá antes de entrar aqui, também tirei uma senha, mas ainda tenho mais de trezentos números à frente. Cerca de quatro horas de espera... Pois. Não é só você que tem dores de garganta... Já lhe disse que não foram dores de garganta. Foram as vozes! Vozes? Quais vozes? As vozes que eu ouvi. Eram cinco... Está bem, está bem, vá lá dizer isso ao senhor farmacêutico, ele é que percebe desses assuntos... Tenho muita pena, mas não posso ajudá-lo... Obrigado. Sabe, estou ansioso pelo próximo fim-de-semana... Ai sim? E porquê? É que o meu pai, sabe, vem buscar-me para irmos para a quinta. Tem uma quinta, o seu pai? Que sorte... Temos lá cavalos... Cavalos e tudo? Sim. E há um lago, enorme, onde nadam peixinhos de todas as cores... Desculpe, mas não posso estar aqui na conversa consigo. Posso ser despedida. Faça de conta que me está a dar alguma informação... Mas eles gravam tudo, então você não sabe? Porque é que está a sussurrar? Chiu, fale mais baixo, é para não se perceber na gravação. Sim, não sabia? Não estamos só rodeados de câmaras por todo o lado, também há gravadores. Mas onde? Não se vêem... Não, são umas coisinhas minúsculas, uns chips ou lá como lhes chamam, metem-nos em todo o lado, nos estofos das cadeiras, por baixo das mesas, se calhar até nos espetam aquilo debaixo da pele, sem nós darmos por isso... Está a gozar comigo? Não, não estou. Vá-se embora, vá lá comprar o xarope para a sua garganta... Já lhe disse que o meu problema é outro! Porque é que ninguém me ouve? Hoje em dia ninguém ouve nada. Oiça um conselho, vá para casa... E quando elas começarem de novo? Vá descansar... Elas quem? As vozes, caramba! As vozes? Quais vozes? Ah, sim, já me lembro! Olhe, sei lá o que lhe diga... Fale com elas! Nem toda a gente tem a sorte que você tem, hoje em dia já não há ninguém com quem se conversar... Vá para casa, vá... e fale com elas...

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