quarta-feira, março 10, 2010

Um-dó-li-tá-cara-damendoá

Ser o único sobrevivente de um naufrágio pode tornar-se, com o tempo, numa doença. A doença da indiferença. Não direi da solidão, porque solidão é uma palavra demasiado benévola para a descrever. Senão vejamos: a solidão não nos impede de nos identificar com os outros. A indiferença sim. E às tantas nada tem importância. O mundo perde as referências. Nada se compara ao sofrimento por que passámos. Nada o pode igualar. Podemos convencer-nos de que estamos vivos (afinal sobrevivemos); puro engano: daí a uns anos estaremos completamente mortos. Ainda mexemos o corpo mas estamos mortos. Mortos no coração das pessoas, dos amigos, da família, que é o único sítio onde interessa permanecer vivo, ainda que morto. Não é muito difícil imaginar: como é que alguém suporta quem não dá importância a nada? Aquele tipo de pessoas que diz, ou pensa, o que vai dar no mesmo, porque mesmo sem serem ditas as coisas acabam por transparecer, o quê, a tua mulher pôs-te os cornos? Ó camarada, sabes lá tu o que é estar com a corda no pescoço. Ai foste despedida? Ó minha amiga, sabes o que é já estarmos com água até ao pescoço e não haver saída? Sabes lá o que é isso! O teu filho o quê? É toxicodependente? Como é que descobriste? Ó pá, e não conseguir respirar, sabes o que é não conseguir respirar? A Manuela perdeu o bebé? Coitada... Sabe lá ela o que é saber que se vai morrer no minuto a seguir. O quê, filha? O teu namorado deixou-te? O pai agora está muito cansado, o pai já sentiu o coração parar no peito... Também já sentiste? Não digas disparates, sabes lá o que é isso... O quê, estás doente? Tens o quê? Cancro? Isso agora já se cura, não é? Quem é que morreu? O teu tio? Podes ter a certeza de que agora é que ele está bem. Ao menos já não sofre...
E o rol continua, imparável. Nada nem ninguém os pode afectar, desgraça nenhuma, porque a maior desgraça de todas, foi a deles. E sobreviveram, que grande castigo.
Ninguém os pode entender, portanto não falam com ninguém da sua tragédia. O que ainda os isola mais. Acabam por erguer um muro de pedra à sua volta, completamente impenetrável. Nada os afecta, ou antes, tudo os afecta, e por isso precisam de erguer o muro, para se defenderem de nova derrocada. A dor passa a ser tabú.
Sem compaixão pelas pessoas, só lhes resta dedicarem-se às coisas. Podem dedicar-se ao trabalho, por exemplo. Ou à casa, ou a uma causa. E um dia quando forem chefes de alguma coisa apenas darão crédito àquelas pessoas que, como eles, saibam o que é o verdadeiro sofrimento. Ou pareçam saber. Apesar de ser um pouco paradoxal, pois estão convencidos de que ninguém nunca passou pelo mesmo. Ninguém pode fazer a mais pequena ideia... Há sempre aqueles que se aproximam disso. Na hora de escolher um empregado, por exemplo, vão beneficiar os que tenham mais mágoas arquivadas. Vão estranhar as suas perguntas, vão achar que é maluco, para que quer saber que já perdi alguém? Se já tive algum acidente? Se já estive à beira da morte? E assim estas pessoas rodeiam-se do seu exército particular de sofredores; pessoas que, como elas, sabem dar valor ao que é verdadeiramente importante; pessoas que enrijeceram à custa da tormenta. O pior é que aquilo que é importante já não lhes interessa para nada. Porque deixaram de vê-lo.

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