terça-feira, abril 27, 2010

O rosto

Acordar, abrir os olhos, e ser a primeira coisa que vejo. Pregada na parede, no canto do quarto.
Levantar, desenrolar rotinas e bocejos.
No canto da parede, nos azulejos da casa de banho, colada aos vidros da janela.
Uma mancha na brancura da parede. Uma nódoa.
As vozes. Os gritos. Os almoços. Os jantares. Os miúdos na escola. O silêncio. Caminhar. O sol na cara. Os gritos outra vez. Porque gritam eles tanto? São felizes. Fazem disparates. Lutam. Riem. Gritam.
O cansaço, e o olhar a escapar-se para o canto.
A vê-la. Sempre. Sempre.
Até de olhos fechados.
A hora de irem para a cama. Uma luta renhida. Sempre os mesmos gestos, as mesmas palavras, os mesmos gritos, as ameaças, a zanga. A exaustão.
E ela lá. No fundo de mim.
Desvio o olhar e continuo a vê-la.
A última coisa que vejo, antes de fechar os olhos e adormecer.
Todos os dias.
(Antes só via a sombra. Agora consigo ver-lhe o rosto.)

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