sexta-feira, maio 14, 2010

Blueyedboy, um cheirinho, traduzido por mim

"Está a vizualizar a página de blueeyedboy em badguysrock@webjournal.com
Posted @ 02.56, segunda feira, 28 de Janeiro
Status: público
Mood: nostálgico
Listening to: Captain Beefheart: ‘Ice Cream For Crow’
Azul. A cor do homicídio, pensa. Um azul gelado, denso como uma cortina de fumo; azul gangrena, cadavérico, de um corpo autopsiado. É também a sua cor, em todos os sentidos, percorrendo o seu circuito interno como uma carga eléctrica, gritando sem cessar aquela palavra em tons azul, assassínio, à sua passagem.
O azul envolve tudo à sua volta. Vê-o, pressente-o em todo o lado, do azul do ecrã do computador ao azul das veias nas costas das mãos, agora elevadas, torcendo-se, fazendo lembrar o rasto das minhocas na areia, na praia de Blackpool, onde costumavam ir, os quatro, todos os anos, no dia do seu aniversário, para comer um gelado, chapinhar na água do mar, apanhar pequenos caranguejos movendo-se apressados no meio das algas e metê-los dentro de um balde para morrerem no calor do sol escaldante.
Com apenas quatro anos, há uma inocência peculiar no modo como leva a cabo estes pequenos assassínios isentos de culpa. Não há qualquer malícia no acto, apenas uma vívida curiosidade pela coisa deslizando sem cessar e em círculos no fundo do balde, tentando escapar, para, horas depois, desistir da luta, as pinças abertas, a parte de baixo do corpo exposta numa mímica de redenção, alturas tantas em que ele há muito perdeu o interesse e se delicia com um gelado de café (uma escolha bastante sofisticada para um garoto da sua idade, mas a verdade é que nunca apreciou o sabor deslavado da baunilha), e quando volta a descobri-la no fim do dia, chegado o momento de despejar o balde e voltar para casa, fica vagamente surpreendido por encontrar a criatura morta, e pergunta-se, com espanto, como é que aquilo pôde ter sido algum dia um ser vivo.
A mãe dá com ele de olhos arregalados, cutucando a coisa morta com a ponta do dedo. A sua maior preocupação não se prende com o facto de o filho ser um exterminador, em vez disso alarma-se por o ver tão facilmente influenciável e de tantas coisas o perturbarem de uma forma que não entende.
- Não brinques com isso – diz-lhe – é feio. Anda.
- Porquê?
Boa pergunta. Dentro do balde as criaturas não deram sinal de vida durante toda a tarde. Ele pensa no que poderá ter acontecido. Estão mortas, conclui. Apanhei-as e elas morreram.
A mãe abraça-o. É isto precisamente que ela teme. Qualquer tipo de explosão emocional: lágrimas, talvez; algo que faça as outras mães olharem-na do alto do seu desdém.
Conforta-o:
- A culpa não foi tua. Foi apenas uma fatalidade. Não foste tu…
Uma fatalidade, pensa ele. E, no entanto, sabe que é mentira. A culpa foi sua, e o facto de a mãe o negar confunde-o mais ainda que a voz estridente dela e o modo febril com que o aperta nos braços, manchando -lhe a camisola com óleo bronzeador. Afasta-se – detesta sujar-se – e ela olha-o, inquieta, tentando perceber se é desta que ele vai desatar a chorar.
Não sabe se deve chorar. Talvez a mãe espere as suas lágrimas. Consegue intuir-lhe a ansiedade, o modo desesperado com que tenta protegê-lo da dor. A aflição da sua ma cheira ao coco do óleo bronzeador, misturado com um travo a frutas tropicais, e subitamente aquilo – aquela coisa morta - atinge-o – morta! Morta! – fazendo-o realmente chorar.
Então ela faz um gesto com o pé na areia, cobrindo o resto da sua pescaria – um caracol, um camarão e um linguado bebé agonizante, a pequena boca com a forma trágica de um quarto decrescente – enquanto sorri e canta; Hoops! Todos para casa! – tentando brincar, ao mesmo tempo que o agarra com firmeza, de modo a que nenhum resquício de culpa possa ensombrar o azul do olhar do seu menino.
Ele é tão sensível, pensa. Com uma imaginação tão surpreendente. Os irmãos pertencem a outra raça, de joelhos esfolados, cabelo em desalinho e lutas em cima das camas. Não precisam da sua protecção, pois têm-se um ao outro. Têm os amigos. Gostam de gelado de baunilha, e quando brincam aos cowboys (dois dedos formando uma pistola) usam sempre os chapéus brancos e apanham os maus.
Ele, no entanto, sempre foi diferente. Curioso. Impressionável. Pensas de mais, diz-lhe às vezes, com o olhar de uma mulher demasiado apaixonada para admitir a existência de qualquer falha no objecto da sua devoção. Ele sente o quanto lhe é valioso, o quanto ela o quer proteger de tudo e de todos, da mais ínfima sombra que possa escurecer os céus azuis da sua existência, de toda e qualquer lesão, ainda que infligida por si mesmo.
Pois o amor de uma mãe é cego, altruísta, é sacrifício; o amor materno pode perdoar qualquer coisa: birras, lágrimas, indiferença, ingratidão, crueldade. O amor de mãe é um buraco negro que engole qualquer crítica, absolve toda a culpa, blasfémia, roubo, mentiras, transformando a acção mais vil em algo que não é culpa sua – Hoops! Todos para casa!
Até mesmo o acto de matar.

Comentários:
Captainbunnykiller: LOL meu, dás-lhe bem!
ClairDeLune: Isto é maravilhoso, blueeyedboy. Acho que devias escrever mais profundamente acerca da relação com a tua mãe e a forma como esta te afecta. Não acredito que alguém nasça mau. Simplesmente fazemos más escolhas, é tudo. Fico à espera do próximo capítulo!
JennyTricks: (comentário apagado)
JennyTricks: (comentário apagado)
JennyTricks: (comentário apagado)
Blueyedboy: Obrigado…"

(Joanne Harris, Blueyedboy, Transworld Publishers, 2010. Esta tradução foi feita por mim e não corresponde à tradução oficial portuguesa)

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