terça-feira, maio 18, 2010

Estou a gostar disto :-)

"Está a visualizar o WebJournal de blueeyedboy
Posted @ 17.39, segunda feira, 28 de Janeiro
Status: restrito
Mood: virtuoso
Listen to: Dire Staits: ‘Brothers In Arms’"

"O meu irmão morrera há menos de um minuto quando as notícias chegaram à minha página online. É mais ou menos o tempo que demora: seis ou sete segundos para filmar a cena com a câmara de um telemóvel, quarenta e cinco para fazer o upload para o YouTube, mais dez para enviar para todos os amigos via Twitter13:06 OMG! Acabei de testemunhar um terrível acidente de carro – e depois disso as resmas de mensagens a chegarem ao meu WebJournal; textos, e-mails, um não acabar de oh meu Deus.
Bem, podemos saltar a parte das condolências. O Nigel e eu odiámo-nos mutuamente desde o dia em que nascemos, e nada do que alguma vez fez, incluindo ir desta para melhor, poderá mudar o que sinto. No entanto, era o meu irmão, e não me custa nada usar de uma certa discrição, de modo a não ofender susceptibilidades. E a Ma deve estar muito perturbada, com toda a certeza, apesar de ele nunca ter sido o seu preferido. Mãe de três crianças, hoje apenas lhe resta um dos seus filhos. Sinceramente Teu, blueyedboy, agora a um passo da verdadeira solidão…
A polícia demorou o seu tempo, como é habitual. Quarenta minutos, de uma porta à outra. Ma estava lá em baixo, a fazer o almoço: costeletas de borrego com puré, e uma tarte para a sobremesa. Durante meses mal tinha comido, e de súbito poderia devorar pedras. Talvez precise da morte de um irmão para me abrir o apetite.
Segui a cena do interior do meu quarto: o carro da polícia lá fora; a campainha da porta; as vozes; o grito. O som de qualquer coisa, no vão do hall de entrada – a mesa do telefone, suponho  - empurrada com estrondo contra a parede, enquanto ela caía, amparada de cada lado pelos dois polícias, as mãos estendidas, na tentativa desesperada de agarrar qualquer coisa, e depois o cheiro a gordura queimada, provavelmente as costeletas de borrego esquecidas na grelha no momento em que abrira a porta.
Era a minha deixa. Desligar o computador, desligar-me da ficção e entrar na realidade. Arcar com as consequências. Por um momento considerei a hipótese de deixar um dos auriculares do ipod no ouvido. A Ma está tão acostumada a ver-me com eles que se calhar já nem nota; mas os dois polícias eram outra loiça, como é óbvio, e a última coisa que eu queria naquele momento era que alguém me achasse insensível…
- Oh, B. B., aconteceu uma coisa horrível…
A minha mãe tem queda para o melodrama. A face contorcida, os olhos arregalados, a boca escancarada, parecia a máscara de Medusa. Os braços estendidos, apontados na minha direcção, como uma catapulta pronta a deitar-me por terra, os dedos cravados nas minhas costas com a força de garras, a boca num uivo interminável junto ao meu ouvido direito – completamente à sua mercê sem a protecção do ipod – enquanto dos olhos corria um rio azul de lágrimas, por causa da maquilhagem, alagando-me a gola da camisa.
- Ma, por favor. – Detesto sujar-me.
A mulher polícia (há sempre uma) empenhou-se em confortá-la. O colega, um homem mais velho, deitou-me um olhar cansado, onde se lia uma infinita paciência, e disse:
- Sr. Winter, houve um acidente.
- Nigel? – perguntei.
- Receio que sim.
Contei mentalmente os segundos, ao mesmo tempo que reproduzia a introdução de “Brothers In Arms” na minha cabeça, Mark Knopfler na guitarra. Sabia que estava sob escrutínio, não podia dar-me ao luxo de um deslize que fosse. A música, porém, torna as coisas mais fáceis, reduzindo respostas emocionais inapropriadas e permitindo-me funcionar, se não de modo completamente normal, pelo menos sem defraudar expectativas.
- Eu sabia que alguma coisa tinha acontecido – acabei por dizer – tive um pressentimento muito estranho.
Ele acenou com a cabeça, como se entendesse o que eu queria dizer. Ma continuava aos gritos, onde a raiva se misturava com a dor. Já chega, Ma, pensei; afinal de contas nem se davam assim tão bem. Nigel era uma bomba relógio, mais tarde ou mais cedo aconteceria uma coisa destas. E acidentes de viação são tão comuns, hoje em dia. Tragicamente inevitáveis. Gelo na estrada, o trânsito infernal; quase se poderia dizer o crime perfeito, acima de todas as suspeitas. Pensei que talvez me caíssem bem algumas lágrimas, mas optei por alguma reserva. Sentei-me – tremendo visivelmente – e segurei a cabeça entre as mãos. É uma posição incómoda. Chega a doer. Sempre sofri de dores de cabeça, especialmente em momentos de stress. Imagina que é apenas ficção, blueyedboy. Uma das tuas histórias online.
Mais uma vez busquei conforto na minha playlist imaginária, onde os tambores tinham acabado de fazer a sua entrada, contrapondo a batida suave a um refrão de acordes de guitarra, as notas sucedendo-se umas às outras tão naturalmente que parecem provir de uma indolente ausência de esforço. Evidentemente, é apenas o que parece. Nada com uma precisão semelhante pode atingir-se gratuitamente. No entanto, Knopfler tem dedos longos, com uma curiosa forma de espátula. Nasceu sem dúvida para o instrumento, destinado desde o berço a manobrar as cordas ao longo do braço com uma excelência que se poderia dizer congénita. Se tivesse nascido com outras mãos, alguma vez teria pegado numa guitarra? Ou tentaria na mesma, sabendo de ante-mão que a sua performance seria sempre de segunda categoria?
- O meu filho estava sozinho no carro?
- Senhora? – o polícia parecia não ter ouvido bem.
- Não estava uma rapariga com ele? – a voz de Ma, com aquele tom de desagrado que sempre reserva para as conversas acerca da namorada de Nigel.
O polícia abanou a cabeça. Não, senhora.
Ma espetou os dedos no meu braço.
- Ele sempre foi tão cuidadoso – disse – o meu filho era um excelente condutor.
Bom, isto só mostra o quão pouco ela sabe. Nigel guiava com a mesma sobriedade, moderação e subtileza com que conduzia as suas relações afectivas. Sei do que falo; ainda tenho as marcas. Porém, agora que está morto, passou a ser um modelo de virtude. Não é justo, não acham, depois de tudo o que eu fiz por ela?
- Vou fazer-te um chá, Ma.
Qualquer desculpa para sair daqui. Fiz menção de me dirigir à cozinha, porém encontrei o polícia obstruindo-me a passagem.
- Queira desculpar, mas vai ter de nos acompanhar à esquadra.
A minha boca secou subitamente.
- À esquadra?
- Formalidades, senhor.
Por momentos vi-me saindo de casa algemado, levado para a prisão. Ma desfeita em lágrimas; a vizinhança em estado de choque; eu enfiado num uniforme cor de laranja (nada o meu estilo de cor), encerrado numa cela sem janelas. Na ficção fugiria: deixaria o polícia derrubado no chão, roubaria o carro e atravessaria a fronteira antes de conseguirem pôr a minha fotografia em circulação. Na vida real…
- Que tipo de formalidades?
- É preciso identificar o corpo, senhor.
- Ah, isso…
- Lamento muito, senhor.
A Ma exigiu que fosse eu, claro. Esperou cá fora enquanto eu dava nome ao que restava de Nigel. Tentei fazer daquilo uma ficção, imaginar-me num filme, mas mesmo assim acabei por desmaiar. Trouxeram-me para casa de ambulância. De qualquer forma, valeu a pena. Sabê-lo morto, livrar-me para sempre do filho da puta…
Isto não passa de ficção, estão a perceber? Nunca matei ninguém. Dizem-nos para escrevermos apenas o que sabemos, como se alguém pudesse realmente escrever sobre o que sabe ou julga conhecer, como se conhecer fosse o essencial, quando na verdade o essencial é o desejo. No entanto, desejar o meu irmão morto não é o mesmo que matá-lo. Não tenho culpa se o universo segue o meu WebJournal. E assim a vida continua – pelo menos para alguns de nós – a mesma de sempre, e blueeyedboy pode ao menos dormir o sono dos justos – ainda que não inteiramente o dos inocentes."

(Joanne Harris, Blueyedboy, Transworld Publishers, 2010. Esta tradução foi feita por mim e não corresponde à tradução oficial portuguesa)

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