segunda-feira, maio 17, 2010

Estranha

Olha-se ao espelho.
É tudo muito bonito, pensa. Isto de tentar compreender, analisar, os porquês, os senãos, os deslizes. Uma vida inteira. Os significados. Os quartos escuros finalmente removidos de pó e teias de aranha, o sol a rebentar pelas janelas abertas. Que lindo que é conseguir sorrir por detrás das lágrimas, encontrar forças para se erguer nas pernas, ser dela aquela mão que tanto deseja, que tanto espera a ampará-la.
Cada passo é um martírio de dores, como se caminhasse num chão de pedras lascadas com os pés nus.
Está desfeita por dentro e no entanto, nenhuma ruga é visível no seu rosto.
Continua a sorrir todos os dias. A dar os bons dias. A lamber botas. Sapatos. Engolir tapetes inteiros, se for preciso.
É tão mais fácil esquecer. Fácil?
Nunca soube o que era fácil. Fáceis eram os exercícios já nem se lembra de quê, aqueles que fazia com uma perna às costas.
Nunca confies nos espelhos, sussurra para si mesma.
Aquela estranha que a olha do lado de lá.
Uma vontade louca de partir o espelho. Partir a loiça toda. E depois esfregar-se nos cacos, para que doa, para que finalmente sangre.
Finalmente desatar o nó que a asfixia por dentro.
Atirar pedras. Daquelas certeiras, pontiagudas, mortais. Sem dó nem piedade. Sem hesitar. Sem medo. Finalmente a crueldade que é a única verdade que nunca viu a luz.
Pena, só de si mesma.
Mas nem isso, já. Apenas aquela melancolia que fica depois da tempestade, quando o vento abranda e o peito se abre, imenso, com uma sede secular.
Os lábios em ferida.
Os olhos prontos para ver morrer a ave no horizonte, onde a luz ainda tece antigos fantasmas na sombra.
Apaga a luz. Já não tenho medo de olhar-te.
A estranha do lado de lá.

Sem comentários: