sábado, maio 08, 2010

Leituras















Joanne Harris tem este dom de conseguir meter-se na pele de qualquer pessoa. A ela e a nós, e antes que nos demos conta, lá estamos, enfornados nos sapatos de um maluco qualquer, um gajo completamente passado, um criminoso, um perverso. Só que, sem darmos conta também, começamos a encontrar qualquer coisa familiar debaixo daquela capa, qualquer coisa que é nossa, também. Uma pessoa como nós; a pessoa que poderíamos ter sido, se. Se. Talvez.
Hoje em dia está na moda escrever sobre perversões, e se forem sexuais melhor ainda. Escreve-se muito, porém, sempre com aquela distância confortável de quem assiste, ou com uma proximidade obscena apenas para fazer número, para exibir, ou para ocultar, conforme o caso. Ninguém, a bem dizer, se quer enfiar na cabeça de um desses personagens completamente loucos. Muito menos encontrar semelhanças com ele ou ela.
É isso mesmo que Joanne Harris faz com perícia: enfia-nos, sem pedir licença, na cabeça das pessoas mais abjetas. Sem pudor. Sem medo.
Esta é também uma estória sobre outros personagens, aqueles que criamos nesta rede virtual, todos os dias, uns por não terem mais que fazer, outros por preguiça ou inércia, outros por não ousarem sê-lo fora do ecrã, outros por lhes faltar a alma, outros porque sim ou porque não. A forma como nos pintamos, produzimos, enganamos, mentimos, ou dizemos a verdade sem querer dizê-la, expondo-nos sem querer fazê-lo. E a possibilidade de tudo, afinal, não passar de uma mentira que fabricamos, alguém que inventamos; alguém que ambicionamos ser; alguém de quem fugimos e para quem somos atraídos irremediavelmente. E também a figura estúpida que tantas vezes fazemos, sem disso nos apercebermos, quando deixamos comentários a aplaudir aquilo que não fazemos a mínima ideia do que se trata, porque as palavras ocultam, as mais das vezes, mundos de que não conhecemos sequer a superfície.
Uma estória que nos deixa presos no suspense até ao fim, que nos surpreende, como só ela sabe surpreender, e que, no fim, revela tanto de nós mesmos. E o mistério persiste, mesmo depois da última palavra.

Sem comentários: