Desde que o mundo é mundo que as crianças, mais os rapazes que as raparigas, brincam às guerras, digo eu, talvez para me convencer disso. Quando tinha 20 anos lembro-me de achar que nunca iria dizer coisas como isto no meu tempo não era assim, e agora não me ocorre outra coisa. Talvez esta frase seja inevitável, porque de facto o tempo passa, quer queiramos quer não; quer achemos ou não que vamos saber acompanhar as mudanças intrínsecas ao passar dos anos.
Bom. Acontece que no meu tempo as criancinhas brincavam com pistolas, brinquedos inofensivos, atirando tiros para o ar, matando e morrendo vezes sem conta, como convém a um cenário de guerra que se quer realista. Só que esse cenário era invisível, não estava ali; as imagens até podiam correr nas nossas cabeças, com um realismo de película de primeira qualidade, que dentro da cabeça de cada um, cada um é rei. O facto de não vermos as coisas torna-as menos reais por causa disso? Aí está uma boa questão. Ou talvez mais uma para me acalmar a consciência, quem sabe?
Ora agora as guerras ocorrem bem à nossa frente, no ecrã da televisão, e as brincadeiras dos nossos meninos, que para sempre queremos inocentes, adquirem uma realidade, ainda que virtual, que nos arrepia a nós, às crianças de outrora que apenas tínhamos os dedos ou as pistolas de fulminantes e a imaginação para improvisar perseguições e mortandades. E está tudo ali, a cores e ao vivo: o cenário marcial, a parafernália de armas, os tiros, o sangue, os gritos. O inimigo que se abate, uma pessoa igualzinha a nós, que cai à nossa frente, e a quem conseguimos ver o rosto e o sangue a esvair-se das feridas. No meu tempo, lá está, o inimigo nem sequer tinha nome. Não existia. Não estava lá. Ou estava, dentro da nossa cabeça, claro, e livre de se imaginar o que se quisesse. Mas será que é a mesma coisa?
Eu sei lá se é a mesma coisa! Há uma parte de mim que diz que não, pode lá ser uma coisa destas! E vá de proibir os miudos de jogar esses jogos violentos. Não pela violência em si, mas pela maneira como está à vista. A visão de tanto sangue e corpos moribundos não pode ser permitida de modo nenhum, ainda que seja tudo falso, ainda que não passe de um filme.
Os miúdos, porém, insistem, e prometem-me que só matam os maus. Fico a vê-los enquanto jogam e discutem estratégias, shoot him, don't kill him, watch out, you're gonna be killed, come on, get to the point, there's guys inside the building, etc, e percebo que a forma descontraída como encaram aquilo que para mim é um cenário horrível não pode ser confundida com indiferença. São apenas os meus filhos a brincar. Eles sabem que aquilo não é real. Sabem simplesmente, como só as crianças podem saber.
Eu, ainda assim, assusto-me com a semelhança com a realidade. Eles continuam com o jogo, impertubáveis à visão do sangue, matando e morrendo uma e outra vez sem pestanejar, enquanto vão falando de outras coisas. E então penso que, se calhar, o problema é meu. Eu é que não consigo descolar a realidade da fantasia, e entrar no mundo do faz de conta. Eles conseguem, e por isso são livres para experimentar toda a espécie de emoções sem medo. Porque, afinal, é tudo a fingir, ou não é?
Confesso, talvez este tempo, em que o virtual tomou conta do imaginário, seja de mais para mim. Acabei por dizer-lhes, olhem, isto é só um jogo, por isso não faz mal matar, porque é a fingir. Podem matar quem quiserem. Mas não vos quero a jogar a tarde toda, que passar tanto tempo a fingir que se mata pessoas não é muito saudável. Mais quarenta minutos e estamos arrumados.
Eles riram-se. Eu também. E não pensem que não fiquei a remoer. Fiquei. Há, porém, em mim, uma forte convicção, a de que só se pode brincar às guerras com tamanha indiferença quando as guerras pertencem inteiramente ao mundo da fantasia. Quando se vê a semelhança com a realidade perde-se a ingenuidade e a capacidade de brincar com um assunto tão sério.
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