quinta-feira, dezembro 02, 2010

Medo de escrever

Estava com medo de escrever, a verdade é essa, e com medo de escrever não se escreve. Escreve-se com medo do escuro, do passado, de fantasmas mais ou menos imaginários, do falhanço, do ridículo, de tudo e de mais alguma coisa; porém, se o medo é do que se vai escrever, não dá. Claro que o medo nunca é do que se vai escrever, mas sim do que isso vai suscitar, do que vai acordar em nós. Todos temos os nossos quartos escuros que preferimos manter na penumbra. Escrever é iluminá-los. A gente pode arranjar personagens e enredos, mas cá no fundo sabemos que é de nós mesmos que saem as palavras, mascaradas de outras realidades, para que a exposição não seja demasiada. A exposição é sempre demasiada. Por isso assusta. Não se trata apenas de saltar para dentro da cabeça deste homem, como já tantas vezes disse, deste homem que é quase uma lenda na minha família. As lendas têm este poder mágico de nos transportarem para épocas inenarráveis; nada melhor para quem se tenta esconder atrás de um personagem. Não, no fundo é outra coisa. No fundo esta viagem é um luto, e os lutos são sempre penosos. Os lutos abrem-nos portas que preferíamos manter cerradas para sempre. Os lutos acordam-nos fantasmas que nem nos piores pesadelos ousam visitar-nos. O medo que nos assombra os pesadelos é, apesar de tudo, suportável, uma vez representável e passível de sublimação mental. Pior do que um pesadelo terrível é não conseguir sonhar, não poder simbolizar o medo num fantasma que, apesar de aterrador, pode ser encarado.

Quando se tem medo de escrever, o melhor que há a fazer é pegar no medo e escrever com ele. Deixar que ele invada a escrita e o movimento dos dedos no teclado. Ele acabará por arranjar o disfarce e as palavras adequadas para se expressar, para se entranhar na estória, para alimentar essa mesma estória. Para deixar de ser apenas nosso. Chegados aqui, já não estamos a escrever sobre nós, nem sobre o nosso medo. O nosso medo transformou-se noutro medo qualquer. Ainda é nosso e já não tem nada a ver connosco. Conseguimos chegar onde queríamos: escrever sobre nós sem escrever sobre nós. Aceitar que escrevemos sempre sobre nós, escrevendo sobre outros. Aceitar que somos outros para podermos ser nós mesmos.

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