quarta-feira, dezembro 01, 2010

Um segredo só seu

Então ela perguntou-lhe, já se sentiu feliz alguma vez? Fechou os olhos, não queria acreditar. Claro que já fui feliz, apeteceu-lhe gritar. Todos os dias quando me levanto, e olho o céu e vejo o sol brilhar, ou ouço o vento nas árvores, e sinto o ar entrar nos pulmões, o ar que tem aquele cheiro da terra depois da chuva. Quando vejo as folhas do outono, as cores, as texturas, as rugas nos troncos das árvores. Na primavera, quando as árvores se acendem de flores, e no ar pairam os pólens que nos fazem espirrar, misturados com o perfume da vida a germinar. Ou quando alguém me estende um sorriso, um olhar, um gesto, e nesse gesto me diz que não estou só no mundo. Ou quando a neve cai e fica tudo branco, e depois aquele silêncio que enche tudo, um silêncio mágico que desliza como veludo pelo ar frio. Tanta coisa que me faz feliz; e nem estou a falar daqueles momentos de êxtase, como quando me apaixonei à primeira vista pelo homem que soube, naquele segundo, que seria meu; ou quando senti os meus filhos saírem de mim, no meio das dores e dos líquidos vitais. Será que alguém pode viver sem ser feliz, ainda que por momentos, apenas? Será que alguém acredita nisso? Sentiu aquela garra na garganta, aquela zanga de estar a ser olhada por alguém apenas pela metade; aquele olhar que nos tira as medidas, quase sempre erradas; aquele olhar treinado que apenas vê o que procura, e não o que está à sua frente. Não deu, contudo, vazão ao sentimento. Não gritou, não se exaltou. Disse apenas, em voz sumida, sim já fui feliz. Quando os meus filhos nasceram, por exemplo. Depois calou-se. Viu nitidamente à sua frente a vida daquela mulher, para quem a felicidade eram apenas migalhas, restos de qualquer coisa que a distríam de dores muito antigas, e soube que era mentira. No acto de sobreviver existe qualquer coisa de irreconciliável, inconformável. Qualquer coisa que se rebela e abana as estruturas. Essa força chama-se vida. Não se pode fingir que se está vivo. Isto sabia-o ela, e mais ninguém. Cabia a si mostrá-lo; era, no entanto, e por enquanto, um segredo só seu.

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