Não, ainda era cedo. Falar do medo é uma coisa, aflorá-lo com dedos delicados; outra, muito diferente, era representá-lo numa imagem, dar-lhe corpo, dar-lhe vida. Resolveu por isso desenhar o rosto. O seu rosto. Primeiro a metade ilesa, a metade visível do exterior; a metade de si que toda a gente conhece. Uns traços leves, delicados, quase bonitos. É também a metade que tenta preservar; a metade boa, por assim dizer. A metade perfeita, intacta.
Depois desenhou a outra. A outra metade do rosto. A face transfigurada, aquela que esconde do mundo, por vergonha; mas que vê sempre que se mira ao espelho. Umas vezes mais, outras menos. Mas está sempre lá, ainda que mais ou menos sumida. A metade que lhe devolve o medo, e a dor, e a vergonha, e a raiva; assim, tudo por inteiro. A metade que é feita de chagas, a metade que é disforme, feia, mutilada. Olhar essa metade, saída assim das suas mãos, foi demais para ela. E então vieram as lágrimas. Um rio que lhe brotou dos olhos e da garganta, e que parecia impossível de acalmar.
As tempestades passam, porém, ainda que não acreditemos nisso quando estamos no meio de uma. Quando as águas amainaram, deteve-se na boca. A metade transfigurada da boca. Havia ali qualquer coisa que queria expressar e não conseguia. Era uma chaga, uma ferida; mas os traços não se definiam. Riscou o papel com fúria, e novamente aqueles traços, de arestas certeiras, lhe lembraram garras afiadas. O lápis ganhou vida própria; parecia voar-lhe das mãos, e ao mesmo tempo cravá-las na terra, enxadas furiosas. A ferida gritava ali, pela boca. Mas a boca estava muda. No fim, depois de muito riscar, olhou, e viu-o. O monstro. Uma ave de rapina que lhe engolia a boca, no seu bico cortante. E o olhar gelado, de abutre; o arrepio do medo. Retocou os traços, prolongou o pescoço e as asas, que cresceram em garras, em volta dos cabelos, em volta do pescoço, cravadas na garganta. Quando terminou, percebeu que o monstro, apesar de tudo, tinha melhorado. Era uma ave, agora. Ela nunca se lembraria de associar uma ave a à figura dos seus fantasmas. As aves, para ela, simbolizavam libertação. Esta ave, apesar de monstruosa, era uma ave. E tinha surgido assim, do nada. Não fora intencional. Roubara-lhe a boca, é certo, e deixara-lhe as garras cravadas na garganta. Ainda as sentia. Talvez não soubesse voar, aquele pássaro. Talvez fosse essa a sua missão. Ensiná-lo a voar.
Sem comentários:
Enviar um comentário