Olhava a sua cara no espelho. Era a mesma e, no entanto, outra. Outra porque não existia de facto, e por isso não era de carne e osso. O corpo que a olhava do lado de lá não era um corpo, mas uma miragem. As miragens não sentem. Nem dor, nem calor, nem frio; não sentem outras mãos; não sentem a pressão, o toque, o arrepio. Olhava a sua cara e dizia-lhe baixinho, deixa-me entrar. Deixa-me ir para o teu lado. Deixa que seja eu aí desse lado, troca comigo. Só hoje. A sua boca, do outro lado do espelho, pronunciava as mesmas palavras, a mesma súplica. No fim, ficava a olhá-la, de longe, imaginando que estava do lado de lá; que era ela a outra, dentro do espelho, espreitando o quarto. Era ela a imagem, e portanto não sentia nada. Nem frio, nem calor; nem medo, nem dor.
(todas as mulheres vítimas de violência, quer física quer emocional, são-no desde crianças, e por isso nunca aprenderam a defender-se nem a proteger-se. Este pequeno texto é para elas, e para as outras, as que, mal ou bem, conseguiram quebrar o ciclo.)
2 comentários:
Bem já não passava por aqui à bastante tempo!!!
Tinha perdido o link desta Pérola de bom português em Londres.
Já o registei, para futuras visitas ;)
Thanx :)
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