Tenho de ir tomar banho, pensou.
Deixar a água arrastar do corpo a perseverança.
Ficar a contar os cabelos no ralo, ou a fingir que os conta. Na verdade pega-lhes como se segurasse um aracnídeo morto. Com a mesma resingação e repugnância.
Depois do banho, o corpo ganha contornos. A alma situa-se sem excessos de volatilização.
É altura de sacudir das costas os últimos resquícios oníricos da noite.
Aqueles que lhe trazem teias de aranha emaranhadas aos pés.
Depois dos gestos habituais, detém-se nos outros. Naqueles que nunca chegam a desenhar-se.
Talvez o prenúncio de uma palavra. O amanhecer de um sorriso. O brilho de uma lâmina.
O pensamento é intenso, e deixa-o voar, pássaro distraído, pela janela aberta.
Os ombros ficam mais leves.
A curva do pescoço arredonda-se no reflexo do espelho.
É difícil deter-se no corpo, enquanto se olha. Enquanto os gestos das mãos trazem a toalha turca colada à pele.
Olha então para lá do corpo. Para aquela linha em que o corpo deixa de lhe pertencer.
Há sempre, no entanto, uma pontada nas costas, uma queimadura no joanete, uma agulha persistente no joelho, ou apenas aquele peso nos ombros, que o trazem de volta. Ao corpo.
O corpo, afinal, mais volátil do que a alma.
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