terça-feira, maio 10, 2011

Agora que comecei tomei-lhe o gosto

Se calhar devia deixar cair as palavras, uma a uma, como pedras num charco, e ficar a ver os círculos na água abrindo-se até ao infinito. Se calhar devia deixar nascer na garganta a vontade de cantar ou gritar até ficar rouca. Um grito animal que devorasse o fogo que me corrói a garganta de cada vez que me calo. Sim, tenho a garanta permanentemente inflamada por causa daquilo que não me atrevo a dizer. Tu deves ser um ouvinte paciente. Daqueles que não interrompem, não bocejam, não piscam os olhos nem olham para o relógio. Daqueles que nem sequer dizem nada, que parecem olhar para dentro de si mesmos, ou para as nuvens, ou para ontem. De tal forma que a gente chega a duvidar se nos estão mesmo a ouvir, ou se adormeceram de tédio. Talvez o melhor ouvinte seja esse, o que apenas finge que não ouve, enquanto se apresenta distraído para não nos coibir ou despertar a timidez latente que todas as confissões embargam. Quem sabe só na penumbra, ou acreditando que não temos testemunhas, ousemos enfim erguer a voz. Não a voz que nasce da vibração das cordas vocais, mas aquela que nos vem cá do fundo, do ventre, do plexo solar, fonte da energia que nos alimenta a corporalidade. Essa voz eu desconheço. Talvez tu ma possas dar a conhecer. Não sei. Quero crer que as pessoas se dirigem a ti muitas vezes em desespero de causa, quando à sua volta não encontram de facto aqueles ouvidos de que precisam. Alguém que saiba escutar. Consegues dizer assim de repente o nome de alguém que o saiba? Pensa bem... Escutar exige silêncio. Muito pouca gente sabe estar em silêncio. E depois há outra coisa, é que quem escuta verdadeiramente não faz perguntas, deixa o outro falar. deixa o outro fazer as perguntas e responder-lhes, ou não; ou simplesmente calar-se. Escuta-lhe o silêncio e isso basta. Escuta-lhe o silêncio como se o bebesse, e assim incorpora-o no seu próprio silêncio. E de seguida devolve-lho, o seu silêncio, fruto da comunhão dos dois. É isso que representas, sim. Um par de ouvidos do tamanho do maior continente mundial. As igrejas deviam ter pintados nas paredes altas e nos tectos ouvidos alados, em vez de anjos. E nos vitrais deviam brilhar puríssimos ouvidos celestiais. As batidas do tambor deviam substituir a melodia aquosa do órgão, nas missas; o caracol devia ser considerado um animal divino, e o tímpano, essa delicada membrana, devia ser preservado de ruídos exacerbados que atentassem contra a sua pureza virginal... Estás a sorrir. Consigo ver-te sorrir, apesar de tentares, a todo o custo, disfarçar. Como aqueles pais que se esforçam por não rir quando os filhos praguejam. Confessa que achas piada às minhas blasfémias. E depois, acertei, não foi? Eu, que não sei rezar, acabei de te dar o retrato da verdadeira oração. Ou deveria dizer, da essência da oração. É que não há uma verdade, nesta matéria, como em tantas; ou pelo menos, apenas uma verdade. O que há é uma essência, que se preenche com o significado que cada um lhe atribui. Cada um procura o seu silêncio, ou o seu ruído, ou simplesmente o seu estar. Sem silêncio nem ruído. E claro que as palavras são escusadas. O que interessa é o que elas dizem. Ou acendem, iluminam, ateiam, transportam, afluem. Confessa, vá. Para uma descrente até que saí melhor que a encomenda.

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