Também, não sei o que me deu para me pôr agora a falar contigo. Faço-me essa pergunta e encolho os ombros de seguida, porque a verdade é que estou um bocado farta desta minha necessidade quase doentia de explicar tudo. O que também não deixa de ser verdade é que o cepticismo, aquele de que falava mais abaixo, há muito que me abandonou. Há muito que abdiquei da racionalidade, a mesma de que tanto me orgulhava aos dezasseis anos, e há muito, também, que deixei de acreditar apenas naquilo que vejo. Por vezes, aliás, encontro muito mais verdade no que apenas pressinto, ou intuo; ou naquilo que desconheço. O desconhecido fascina-me, apesar de ainda me assustar; e o que me fascina mais é o facto de saber que nunca vou conhecer tudo. Acreditar em ti, porém, ainda não. A pergunta, então, ganha renovada (im)pertinência: o que é que me deu para me pôr a falar contigo, se nem sequer acredito que estejas aí? A maluqueira chegou tão longe? O meu lado irónico segreda-me ao ouvido que isto é tudo uma invenção, uma brincadeira, um pretexto para escrever; afinal não passas de mais um personagem criado por mim. Pois, deus sou eu, então não percebeste logo? Mas depois há aquele significado oculto que nasce de tudo aquilo que fazemos e pensamos, quase sem darmos conta; algo que trespassa a nossa vontade e a realidade à nossa volta. Não, deixa-te de lérias, diz-me o meu outro lado, o mais clarividente; aquele que não precisa de olhos para ver; tu estás mesmo a falar com deus. Ou, pelo menos, com aquilo que imaginas possa ser igualado a deus. É difícil perceber o que significará este conceito para uma pessoa que afirma não crer em deus, mas ele existe. O conceito. E não é apenas ideológico, é também um espaço emocional. Um espaço que o descrente sabe à partida não ter acesso. Pois eu, ou uma parte de mim, há muito que abri essa porta. Não a porta para deus, mas para outras realidades, outras vivências, outros universos.
Mas para quê, então? A pergunta persiste. E porquê agora? Será mesmo só uma brincadeira, uma forma espirituosa de arranjar assunto? Ou estarei mesmo à procura de algo? Um sinal? Um milagre? Não, claro que não, responde o meu lado irónico, com um sorriso displicente. E depois ri-se. O meu lado fútil, aquele que detestava na adolescência e com quem me reconciliei por aí, pelas esquinas, pelos túneis das veias cavas que me indicaram o caminho para o coração, diz-me que se calhar estou mas é na crise da meia idade. Mas espera, não, isto não é um rótulo; estás naquela fase de olhar para trás, para a frente, avaliar o caminho, medir as distâncias, percorridas e por percorrer, imaginar os atalhos que poderiam ter sido desbravados, pesar a bagagem e deitar fora o supérfluo, que as costas já não são as mesmas de há vinte anos, e lá num recanto escondido da mente, continuar a sonhar com o mar. Não fosse o meu lado supérfluo a falar. Apesar de termos feito as pazes, às vezes ainda me dá ganas de lhe deitar as mãos ao pescoço. E agora fala o meu lado rebelde, aquele que domei com esmero na adolescência: eu quero lá saber de fases. Eu não vivo por fases. Crise da meia idade? Não sei o que é, assim como nunca cheguei a perceber o que é a crise da adolescência. Tenho por elas o mesmo desprezo que os portugueses têm pelos políticos quando os ouvem falar da crise, seja ela local, global, lojística, financeira, ou o raio que o parta. Crises são as guerras, a fome de populações inteiras, os cataclismos, as catástrofes naturais: tornados, tsunamis, terramotos, avalanches, derrocadas. Crises que nos obrigam a sobreviver sem olhar a meios. O subsequente chama-se stress pós traumático e acompanha-nos para o resto da vida. Mas disso, meu deus, deve tu estar farto de saber, que tens olhos e ouvidos por toda a parte.
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