domingo, maio 29, 2011

Idade

Margarida pousou com cuidado a garrafa de plástico cheia de flores em cima da mesa. Sentiu nas narinas o perfume das flores, acabadas de apanhar no quintal. Sentiu também o cheiro da humidade, de coisas velhas, de cantos escuros e cheios de teias de aranha e de pó, o cheiro a casa que está sempre fechada. Da porta escorria um jacto de luz e de calor, que imediatamente era abafado por aquele frio secular que a falta de luz, paredes grossas e pouca circulação de ar provocam. Havia ainda uma janela pequena, a espreitar de uma das paredes, que dava para o galinheiro, por onde entrava uma nesga de luz amarela. O resto da casa morria na penumbra.
Olhou em volta, a apreciar o espetáculo. Tivera um trabalhão a arrumar as coisas nos seus devidos lugares e a limpar as carradas de pó que se haviam acumulado em cima dos móveis. Pusera a lixarada de coisas indistinguíveis e sem uso a um canto escuro, no chão, para que não se vissem. Limpara o pó dos dois móveis com gavetas e da velha arca, enorme, encostada a uma parede. Esfregara alguns pratos, panelas e pucarinhos de barro com energia, mergulhando-os dentro de um alguidar com água, e depois de escorridos dispusera-os em cima dos móveis e de duas prateleiras pregadas na parede. Essas também tinham precisado de uma boa limpeza, com água e sabão. A mesa triangular, toda pintalgada de borrões de tinta, que não saíam por mais que os esfregasse, brilhava, a madeira ainda húmida. O chão fora varrido com zelo, e depois passado com a esfregona; e apesar de ainda estar um pouco encardido, até se conseguia ver a sua verdadeira cor, assim um vermelho vinho, quase roxo. Margarida fechou os olhos ao pousar as flores em cima da mesa. A garrafa era pesada para os seus pequenos braços, uma dessas de litro e meio, cheia de água até acima. E as flores acotovelavam-se no gargalo estreito. Com cuidado, afastou as mãos, mas calculou mal as distâncias e bateu com a mão numa das hastes, desequilibrando o conjunto, e fazendo com que a garrafa tombasse. Num instante, a água inundou a mesa e começou a pingar para o chão, que entretanto acabara de secar. Margarida não gritou. Deitou as mãos à garrafa e pô-la de novo na vertical. Ficou a olhar para a água que deslizava da mesa para o chão. Um pequeno rio a formar-se dentro de casa, depois de ter tido tanto trabalho a limpar. Sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Queria chorar, mas segurou o choro na garganta. Apeteceu-lhe atirar com a garrafa das flores para o chão e ir-se embora, brincar a outra coisa. Mas tivera tanto trabalho a pôr tudo tão bonito! Margarida engoliu um soluço. Avaliou os estragos. Calculou o tempo e a energia que teria de despender até resolver a situação. Suspirou. Imaginou que era uma mulher velha, dessas que passam os dias a cuidar da casa, do marido e dos filhos. Quase que podia ouvir as três crianças, lá fora, no quintal, em correrias e gargalhadas, e ela ali dentro, a fazer torradas para o lanche. Quando fossem horas haveria de assomar à porta e chamá-los para dentro, venham lanchar, meninos! Enquanto pensava, os braços iam desenhando gestos no ar. Agarrou na garrafa com as flores e pousou-a em cima da arca, não sem antes ter passado um pano na parte de baixo. Foi buscar o balde com a esfregona, que ainda estava encostado à parede, lá fora. Ainda bem que não o despejei, pensou. Com o pano apanhou a água de cima da mesa, e depois espremeu-o com firmeza para dentro do balde, repetindo a operação as vezes necessárias. Depois pegou na esfregona e começou a apanhar a água do chão. No início até podia ver as ondinhas que o movimento da esfregona fazia naquele rio em miniatura. Depressa deixou de haver água no chão. Quando terminou, olhou em volta, sem acreditar. Estava tudo perfeito, outra vez.
Vozes lá fora, passos a correr, e as crianças a entrarem pela porta, num alvoroço. Margarida levou as mãos à cabeça.
- Tenham cuidado, o chão está molhado, acabei de entornar a jarra das flores! Vão lá para fora, andem!
Ficou à porta, a vê-los brincar, com vontade de se lhes juntar. Mas havia tanta coisa para fazer, dentro de casa! Não havia tempo para brincadeiras.
Olhou de novo para dentro. O chão brilhava agora, e as flores davam outra graça ao ambiente. Estava tudo impecável. A verdade é que estava tudo tão arrumadinho, que era uma pena deixar entrar as crianças, que iriam desarrumar tudo outra vez. Margarida suspirou. Estava nisto, quando ouviu uma voz chamar, uma voz que vinha de um ponto lá mais à frente, depois do canteiro das couves.
- Meninos, venham para baixo! São horas do lanche!
As crianças deixaram o que estavam a fazer e largaram a correr. Ela quis correr também mas ficou onde estava, pregada ao chão. A voz vinha lá de baixo, da casa, e ao mesmo tempo de dentro do seu peito. Olhou em volta. A casa estava linda por dentro, como nunca a tinha visto antes. Nessa casa guardavam-se as velharias, estava sempre fechada e era por isso que havia tanto pó e cheirava tanto a bafio. Mas hoje ela tinha conseguido disfarçar o cheiro, arejá-la e emprestar-lhe um  ar de casa habitada. Ouviu outra vez a voz da avó a chamá-la pelo nome. Os primos já estavam decerto sentados à volta da mesa a comer torradas. Só faltava ela. Suspirou de novo e, em passos pequeninos, foi andando, muito devagar, com vontade de estancar o tempo, e deixar-se ficar para sempre dentro daquele segundo. Deixar que esse instante crescesse, a pegasse pelo braço, como se fosse um gigante a pegar numa boneca de trapos, e a levasse para longe, muito longe dos seus oito anos. Para aquele lugar estranho e inabitável onde sabia não haver idade igual à sua.

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