sexta-feira, maio 27, 2011

Bicho do mato

A verdade é que não sabemos relacionar-nos com os outros. Os outros hão-de ser sempre uma espécie diferente, e nós um alien acabado de chegar à terra. Sabemos articular palavras, claro que sabemos, e sorrir, e outros truques como afagar o cabelo, mas o segredo, comunicar, falar, é-nos completamente estranho. À nossa volta vemos os outros, os terrenos, moverem-se com facilidade, despertar sorrisos e frases e admiração ao seu redor, e nós ficamos a olhar, a tentar perceber como se faz, sem êxito. Nós nunca despertamos nada, quando muito um bocejo de tédio. Isto para não falar dos tremores de terra em territórios inóspitos e distantes, todos situados do plexus solar para baixo; mas isso é outra conversa, que estamos fartos de apenas escutar ecos dentro de nós, e apenas e sempre o mesmo silêncio do exterior. Pensando bem, foi para isto que nos preparámos ao longo da nossa (curta? Longa?) vida, para a indiferença, para a invisibilidade. E, afinal, é preciso algum talento para se conseguir chegar lá. Talento? Tretas. É só preciso ter medo, muito medo do olhar dos outros. Que ninguém repare em nós, que os olhares nunca se dirijam para nós, que não aguentamos a vertigem na barriga e a tonteira na cabeça, como se girássemos sem parar num carrossel louco. Não dar nas vistas, o corpo para sempre camuflado no verde da paisagem; não foi para isto que trabalhámos com afinco? Como queremos então que as pessoas nos vejam? Não, nunca saberemos relacionar-nos. Damos os bons dias e as boas noites nas devidas alturas, como a nossa mãe nos ensinou; meninas prendadas e obedientes, bem educadas, subservientes. Por fora mantemos a compostura, enquanto por dentro nos encolhemos, pregamos os olhos ao chão, engolimos a vergonha e ficamos quietas, muito quietas, à espera. Nem sabemos de quê. Afinal não somos deste planeta. As pessoas à nossa volta são seres estranhos que não se inibem de ser tocadas e abraçadas, que não parecem reparar de todo no embaraço que é ter um corpo, como se nelas não coubesse essa dualidade que nos dilacera de alto a baixo, de não saber onde meter as mãos, para onde olhar, quando fechar a boca, onde deixar os pés, quando cruzar as pernas. As pessoas gesticulam e sorriem e disparam palavras na nossa direção, mas nós não sabemos o que querem dizer os sorrisos, os olhares, as palavras. Não falamos a mesma língua. Ninguém fala a nossa língua. É por isso que é tudo tão imprevisível. É por isso que é muito mais seguro que ninguém nos veja ou nos preste atenção. É por isso que é muito melhor o silêncio dentro da nossa cabeça.

Sem comentários: