segunda-feira, maio 23, 2011

Juros e juras

A vida tem passado por ela, e ela vira-lhe as costas. Como quando vemos alguém na rua que e não queremos ser reconhecidos. Pode ser um amigo distante da infância longínqua, um desses personagens que se ria à pala das nossas fraquezas, e a quem, por causa dessas mesmas fraquezas, nunca conseguimos deixar de chamar amigo. Pode ser um ex qualquer, violento, ou apenas chato. Melga. Cola. Eu sei lá! Pode ser aquela professora do 7º ou do 8º ano que nos estava sempre a mandar para a rua, e a quem jurámos tantas vezes partir as trombas. Pode ser um vizinho que não nos descolava os olhos do decote, nós com catorze ou quinze anos e ele com sessenta. Pode ser a gorda da primária a quem chamávamos baleia azul, nós e o resto da classe. Ou podemos ser nós a gorda da primária, e a outra uma dessas que connosco gozavam. Pode ser aquele matulão que um dia nos encostou contra a parede e nos esmagou o sexo com a mão de pedreiro, deixando-nos um rasto nauseabundo que subiu do meio das pernas até à garganta. Ou pode ser aquele cabrão que nos estava sempre a copiar nos testes, e tirava melhor nota que nós. Ou aquela boazona que nos roubou o namorado. Ou aquele gajo a quem devemos dinheiro.

Ou pode ser ela, a vida.

A vida a passar por ela

e ela a virar-lhe as costas.

Não quer ser reconhecida.

Ter que sorrir. Estender a mão. Responder às perguntas da praxe. Fingir. Fingir. Fingir.

E a vida a sorrir, de dentes perfeitos, a transbordar felicidade, a sacudir os cabelos repletos de sol. E ela

pequenina. Pequenina. Tão pequenina.

Às vezes, tem ganas de lhe atirar as mãos ao pescoço. À vida. Puxar-lhe os cabelos com violência, pregar-lhe uma chapada bem dada, daquelas que deixam os dedos marcados no rosto. Desfazer-lhe o sorriso idiota com o punho cerrado, arrancar-lhe a felicidade do peito, rasgá-la com fúria e calcá-la com as botas. E depois perguntar-lhe. Atirar-lhe as palavras como pedras à cara. Porque é que sou eu que tenho medo de elevadores, e de pontes, e de homens com barba, e não tu? Porque é que sou eu que sofro com estes ataques de pânico, que à noite não durmo, que tenho de deixar sempre uma luz acesa? Porquê sempre este medo de sufocar, como se garras invisíveis me cravassem o pescoço, como se o medo fosse uma coisa concreta alojada na garganta? Porquê, minha grande puta?

É o que se chama deitar contas à vida.

E a vida a cobrar com juros.

Sem comentários: