segunda-feira, maio 09, 2011

Oração subordinada

Talvez afinal não seja tarde para aprender a falar contigo. A verdade é que não sei dirigir-me a ti pelos métodos convencionais. Nunca rezei um terço, nem uma ave maria, nem sequer um pai nosso. Lembro-me de ter entrado em muitas igrejas, ao longo de todo o país, principalmente em visitas a cidades e terreolas por onde passávamos nas férias; contudo, nunca para ir à missa. A única missa a que assisti foi numa queima das fitas da universidade sénior, quando uma das inúmeras primas mais velhas terminou uma licenciatura qualquer, teria eu para aí uns dezoito ou dezanove anos. Gostei do ambiente festivo, das vozes do coro e da música do órgão. Antes disso vi muitas vezes pessoas em oração contida, ajoelhadas ou sentadas, murmurando ladainhas ininteligíveis enquanto as mãos se afadigavam com as contas do terço, e nunca fiz a mais pequena ideia do que te diriam elas em tais sussurros silenciosos. Pode dizer-se que sou uma completa ignorante no assunto. Não espanta, portanto, que me sinta constrangida. Tenho, para além disso, um passado pragmático de cepticismo científico que nunca me permitiu entender nem conceber a tua existência, pelo que me encontro numa posição deveras patética se atendermos às certezas absolutas que, já na infância, me assaltavam e me faziam crer no total absurdo que era alguém acreditar em ti, e, por suposto, falar-te. Por conseguinte, aqui me encontro, a fazer esta triste figura de não saber por onde começar, nem o que dizer, muito menos que raio me deu para sequer me passar pela cabeça a tentativa de encetar uma conversa contigo. Ainda para mais está visto que não perdi a arrogância que o tal cepticismo me deixou de herança; se estás a ouvir-me estás também absolutamente convicto da minha condição extrema de pecadora, uma vez que, e isto em abono da verdade deve-se apenas à minha franca ignorância sobre os correctos modos de me dirigir à tua virtuosa divindade, insisto em tratar-te por tu e em transformar um momento solene e de profundíssimo significado como é a oração, numa conversa de tu cá tu lá. Mas se és tão generoso como dizem os que em ti crêem, e se tudo perdoas e amas igualmente todos os teus filhos e filhas, como apregoa com quem contigo partilha intimidades divinas e com todos os modos a preceito (perdão, talvez intimidades não seja a palavra adequada, talvez espiritualidades venha mais a calhar); se de facto todos os pecadores têm um lugar no teu coração, com certeza perdoarás também a minha falta de jeito, e como és a inteligência suprema, saberás ler nas minhas pobres palavras, sem nobreza nenhuma, o significado que elas guardam, este sim o fulcro da questão, e não os adornos nem os malabarismos que a riqueza do vocabulário apropriado tantas vezes mascara, sem contudo dar qualquer riqueza intrínseca ao que se diz. E com tanta explicação já me perdi, já nem sei bem o que te queria dizer. Se calhar devia era deixar-me de explicações e justificações e apenas procurar dizer o que quero, sem pretenções, mas também sem medo de ofender a tua condição superior e absoluta. É isto que mais me faz confusão, sabes, quando vejo tanta gente prestar-te adoração, curvar-se perante ti, idolatrar e venerar as tuas qualidades sublimes e gloriosas, e vejo apenas um rebanho de ovelhinhas assustadas, a confessar os respectivos pecados e a cumprir a penitência com a resignação e o alívio de quem teme a qualquer momento o trágico castigo divino. Que as pessoas te amem e te venerem em festa, e que assim se elevem à tua graça e se sintam parte de algo maior e imbuídas de uma força divina que as faz ter esperança e fé e mover montanhas se for caso disso, não me faz confusão nenhuma, antes pelo contrário; chego a invejar tal estado de espírito. Mas que as pessoas te temam e se refugiem no medo para assim se martirizarem e prolongarem uma existêcia mesquinha, onde a falsidade e a hipocrisia imperam, onde a maldade germina e o terror é a arma que arremessamos aos olhos dos que connosco não comungam, isso nunca vou entender, e, tenho a certeza, se realmente estás aí, também não entenderás e nem sequer aceitarás, já que tudo vês e em todo o lado estás. Mas olha, também não era bem isto que te queria dizer, e agora já me passou. Desculpa, deve ser da hora. Se sabes ler nas entrelinhas, tudo isto faz sentido; se não sabes, fica para a próxima. Também não sei como me devo dirigir a ti nas despedidas, por isso fico-me pelo modo terno e informal com que a minha avó me desejava, antes de dormir, uma noite descansada. Apesar de não ter a certeza se aí, no teu poleiro, também há dias e noites; ou se, pelo contrário, é sempre dia, ou antes uma noite eterna. Sem dia não há noite e sem noite não há dia, assim como sem luz não há escuridão e vice versa. Para ti tanto faz, já que tudo vês e em toda a parte estás; portanto não será dia nem noite, nem luz nem escuridão, nem vida nem morte, já que tudo é nada quando nada é tudo o que não podemos ver.

1 comentário:

T. Ferreira disse...

Para mim, este texto que escreveste representa bem o que sinto. Pessoalmente, nunca me dirigi a deus, pois duvido que ele exista, mas se um dia aparecer...bem posso sempre mudar de ideias. Mas uma coisa é certa, se ele existe deve estar bastante zangado, pois o seu nome tem sido usado para tanta atrocidade e com um objectivo: controlar as pessoas. Se eu fosse crente, seria neste tom que escreveste que me dirigiria a deus, sem frases feitas (sempre iguais, que só me lembram exércitos).