quinta-feira, junho 09, 2011

Exorcismo

Viver dentro do medo é estar no meio de um nevoeiro cerrado. Não se vê nada. Apenas se sente, se cheira e se ouve. O sentido da visão, porém, é aquele que mais nos desperta a racionalidade, que nos liga à realidade. O da audição também, mas tem de estar ligado a palavras e frases com sentido para nos acordar as ligações neocorticais. De outra forma apenas nos chegam ruídos, murmúrios, sons de um mundo desconhecido que nada tem de real ou racional. Encarar traz esta ação do olhar; mais do que olhar, ver. Olhar a cara de alguém, encarar o medo nos olhos. O nevoeiro dissipa-se. O ar à nossa volta desenha-nos o rosto, e o dele, o do medo. Já não estamos sozinhos nem cegos, estamos acompanhados pelo que sentimos e podemos olhá-lo, por mais terrível que seja. Olhando-o, ao nosso medo, podemos descortinar o que dele é terror, angústia, raiva, revolta, desejo, nojo, pena, mágoa, luto, dor, amor, paixão. Olhando as diversas caras de um mesmo rosto podemos separar o que é nosso e o que é do medo. Podemos perceber que o medo nasce do desejo de nos protegermos, por um lado, e do desejo de que alguém nos proteja; e da constatação dessa impossibilidade. O medo é um labirinto onde nos perdemos e deixamos de ver com nitidez, e em vez de procurar a saída, ficamos paralisados, encurralados. O que nos paralisa é a cegueira. É não ver o caminho. Não ver a saída. Quando o encaramos, ao monstro, libertamo-nos por fim. Isso não quer dizer que o medo desapareça por magia, mas que já não estamos presos. Conseguimos ver o caminho e encontrar a saída. O nevoeiro levanta-se e podemos voltar a casa. Não o deixaremos à porta, ao medo, porque ele faz parte de nós. Contudo, já não somos seus prisioneiros. Já não vivemos dentro dele, mas com ele. O medo torna-se uma coisa, quando antes era um contentor; podemos guardá-lo na gaveta, colocá-lo na prateleira, pendurá-lo na parede ou simplesmente deitá-lo fora. Podemos reduzi-lo a cinzas ou crucificá-lo. Parti-lo aos bocados, esmagá-lo, diluí-lo em água, fervê-lo ao lume. Ou podemos brincar com ele. Usá-lo como uma toga, torcê-lo, expremê-lo, lavá-lo. Cozinhá-lo em lume brando, fazer uma sopa, e comê-lo, ou cuspi-lo, cagá-lo, matá-lo e enterrá-lo.

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