domingo, julho 24, 2011

dois caminhos

dois caminhos. existem sempre dois caminhos. um que nos leva para longe e nos lança no mundo. outro que nos faz procurar os passos de regresso. um que nos dá asas e nos empurra para as nuvens. outro que nos prende à terra, que nos cresce raízes nos pés para não perdermos o caminho de volta. dois caminhos. um não existe sem o outro. é para podermos voltar um dia que nos afastamos. quando decidimos partir ainda não sabemos que um dia voltaremos. porém precisamos partir para voltar. precisamos de nos perder no caminho. nos atalhos sombrios. nas noites sem lua. precisamos de nos perder nas montanhas e colher estrelas do céu. as mãos cheias de sonhos. perder a alma nas nuvens. despir o peso do corpo e flutuar nas alturas. descer aos vales. mergulhar nos lagos. ir ao fundo do mar. sonhar peixes e anémonas e recifes inteiros e algas verdes e castanhas. habitar a solidão das baleias distantes. liquefazer a pele no esforço do entendimento e deixar as algas brotar dos ouvidos. emaranharem-se na complicada rede de dendrites e axónios. voltar à superfície e manter o olhar marinho no fundo dos bolsos. uma réstia de humidade a inundar-nos os campos da solidez. solidão? lucidez? porque não lucidão? e depois voltar. voltar como quem descobre um novo caminho e se vai encantando com a sua inesperada familiaridade. reconhecimento. descobrir que é impossível conhecer sem reconhecer. talvez não haja nada de novo no mundo afinal. talvez só seja novo o nosso desejo de conhecer. talvez a novidade seja uma alucinação. voltar a pisar as antigas pegadas. descobrir trilhos muito antigos. lendas ancestrais. o segredo dos antepassados. sussurros que ficaram trancados a sete chaves. voltar pelo mesmo caminho. um caminho diferente. em tudo novo e em tudo velho. voltar ao lugar de onde se partiu. e de repente ver a casa em ruínas. a nossa casa em ruínas. foi das ruínas que fugimos? ou terão disseminado lentamente na nossa ausência? já não nos lembramos. não temos ideia. a imagem que guardamos é de uma outra vida. talvez uma ilusão. a casa em ruínas na nossa frente será uma outra ilusão? ou será apenas o medo? o medo de que tudo o que deixámos para trás tenha de facto apodrecido? o medo de que o que abandonámos esteja perdido? sem remédio? a casa está em ruínas e a nós faltam-nos os braços. as pernas estão gastas, quase mortas de cansaço. serão as nossas próprias ruínas? voltámos e não reconhecemos nada. um deserto de areia escadante, uma planície inóspita. o passado em cacos. o medo na garganta. uma imagem surge então. nítida. no meio das ruínas. uma mão. um braço. um tronco. pernas. outro braço. uma cabeça. um corpo. o corpo de uma criança. está debaixo de umas vigas de madeira. está presa. está morta? corremos. afastamos os detritos. abeiramo-nos daquele corpo frágil. sentimos o pulso. o pulso. pulsa. está viva. auscultamos o peito. respira. está viva. está viva! seguramo-la nos braços. com firmeza. arrastamos o seu corpo para terreno aberto. afagamos-lhe o rosto. ela abre os olhos. está viva. olha-nos. está viva. já não há ruínas. ou antes as ruínas são apenas isso: ruínas de uma casa antiga. paredes velhas. feridas. vigas que soçobraram. exaustas. abertas. mortas. tetos que cederam às intempéries. caídos. a criança está aqui. a criança está viva.

Sem comentários: