quarta-feira, julho 20, 2011

Querida Rosário

Recordo o teu rosto suave, os olhos claros, o cabelo escorrido, o sorriso tranquilo. Recordo o teu rosto de criança. Quando brincávamos aos cinco eras sempre o Júlio, porque eras alta, maria-rapaz, e tinhas o cabelo loiro e curtinho. Lembro-me de tantas vezes ter ficado contigo no refeitório até toda a gente já ter ido para o recreio e a dona Luísa começar a limpar as mesas e a mandar-te despachar, porque nunca querias comer e demoravas sempre eternidades. Eu ficava contigo porque não queria deixar-te sozinha. Eras muito parecida comigo, não por fora, mas por dentro. Eras tímida como eu, e choravas por tudo e por nada. Eu também, e se calhar por isso sentia-me tua irmã. Nunca fomos as melhores amigas mas entre nós havia uma afinidade quase táctil, uma coisa que não precisava de palavras nem de demonstrações constantes, porque estava lá sempre que nos olhávamos. Aquele entendimento que basta a duas almas que são o espelho uma da outra. Era assim, nós crianças, e é assim que quero guardar-te. Depois encontrámo-nos de novo por volta dos 17, vimo-nos umas poucas de vezes, e a última vez foi quando fui tratar de qualquer coisa à repartição de finanças em s. domingos, para aí há uns dez anos, se calhar. Ainda moravas no mesmo sítio. Estavas com um ar cansado e achei-te triste. Claro que não disse nada, estas coisas nunca se dizem quando se perdeu já aquela intimidade e espontaneidade da infância. Trocámos algumas palavras e ficou-me o teu sorriso, o mesmo de antes, apesar dos olhos sombrios. Agora que sei que essa foi a última vez que te vi não páro de pensar. Não sei o que aconteceu, só sei que partiste. Tão cedo. Queria voltar atrás, até àquele instante, ou talvez ainda mais, até aos recreios da CEBE, e agarrar-te na mão e não te deixar escapar. Queria ter estado lá, contigo, em todas as vezes que precisaste de uma mão. Hoje a minha mão já não te alcançará. Nunca mais. Quero acreditar que estás aqui e que não te foste, e só sinto o vazio de saber-te ausente. Queria ao menos poder despedir-me, estar perto, estar presente na tua última morada. Queria poder acompanhar-te, não te deixar sozinha, como quando ficava ao teu lado na mesa do refeitório, implorando-te com os olhos que comesses, para podermos ir brincar para o recreio. Acho que às vezes cheguei a comer do teu prato para te ajudar. Minha querida amiga, vai em paz. Até sempre.

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