domingo, outubro 09, 2011

Voltas voltas voltas e mais voltas

O tempo é incerto. Choveu durante a noite e a roupa molhou-se. Agora olha pela janela e tenta adivinhar a disposição das nuvens. Deveria antes dizer os humores das nuvens, disposição confunde-se facilmente com perspetivas espaciais. Dentro do corpo existe uma espécie de ameaça. Quase uma doença. Mas não, a ameaça, a antecipação do perigo, por vezes é pior do que o perigo em si. Ou não. Dentro do corpo enovela-se algo inominável. Às tantas não há espaço para a lucidez, para a serenidade, para respirar. Os novelos da angústia crescem em proporções despropositadas. Invadem, como um exército de sentinelas, os corredores estreitos da consciência e dos sonhos. Os sonhos não habitam a consciência, pertencem ao território nebuloso e constantemente mutável para lá dela, nos vales e nos abismos do insondável. Aqui a angústia pode-se expandir à vontade, sem constrangimentos. E multiplica-se, sem cessar. Até ao infinito. É aqui que ela tenta, sem êxito, circunscrevê-la à solidão sem portas do que lhe resta de antigos medos. Mas a angústia, além de daninha, é persistente. Insinua-se, contorce-se, despe-se, infiltra-se, goteja, corrói.

O corpo é apenas um. Não se pode dividir ao meio. A consciência também não. Não podemos separar-nos de nós mesmos, arrancar a metade doente e dizer-lhe, faz-te à vida, que a minha não levas. Não podemos despir aquilo de que não gostamos. Não podemos olhar para o braço e dizer, isto não sou eu. Nem para quem fomos ontem. Ou há trinta anos.

O que nos acontece então quando nos cortamos ao meio?

Perguntas de que não queria saber as respostas. As respostas são pesadas e têm picos e exigem um esforço constante. Há perguntas inocentes que despertam respostas pesadas como verdades esmagadoras. Perguntas de que não deveríamos guardas as respostas; antes livrarmo-nos delas, rapidamente e sem remorso. Porque elas não precisam de nós; não são crianças perdidas à procura de braços; é o remorso, o remorso de não saber a resposta certa; a resposta que porventura nos salvaria da confusão e da desilusão; a resposta mágica que reporia a ordem e a certeza no mundo; a resposta inexistente porque impossível, porque não há resposta, não existe tal possibilidade, a de que tudo ficará bem, e a de que o mundo volte a fazer sentido. Só deitando fora o remorso, e a culpa, e a impossibilidade; só vestindo a angústia, o tecido preto da angústia, e deixando o corpo livre debaixo dela; sussurrando-lhe as palavras, essas sim mágicas: não tenhas medo, este medo conheço-o eu, e não, não vai matar-te, o que te mata é a pena que tens de quem te deixou morrer sem um segundo de hesitação. E o remorso que te aprisiona é o mesmo que a tua raiva quer, à viva força, ter visto nos olhos que nunca tiveram nem coragem, nem dignidade, nem humanidade. Os mesmos que nunca te viram e te deixaram morrer sem um segundo de compaixão.

E depois o barulho do vento nas persianas confunde-se com o ruído da chuva e tudo volta ao princípio, quando existe a ilusão de que tudo está no seu devido lugar.

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