sexta-feira, março 16, 2012

Senhor Fortio

Quando estava doente, vinha o senhor Farinha dar-me uma pica, como dizia a mamã. Entrava no quarto, gordo, sempre vestido de preto e azul escuro, e eu escondia-me debaixo dos cobertores. Ficava muito quietinha, porque estava convencida de que, dessa maneira, ninguém me podia ver. Arranjava um buraquinho no meio dos cobertores para espreitar-lhe os movimentos. Fazia sempre os mesmos gestos. Começava por tirar o que parecia uma velha lata de sardinhas, enegrecida e ferrugenta, de uma malinha preta. Sussurrava então qualquer coisa para a senhora Maria, ao que ela acudia prontamente, aparecendo com um frasco cheio de um líquido incolor, que ele segurava nos dedos gordos enquanto despejava um pouco para dentro da lata. Nessa altura um cheiro forte, agudo, espetava-me alfinetes dentro das narinas. A seguir tirava uma caixinha de fósforos da maleta, daquelas pequeninas, abria-a com gestos vagarosos e acendia um, pondo a mão em concha à volta da chama, como se protegesse uma preciosidade. Aproximava o fósforo da lata e aparecia uma chama azul. Retirava então a seringa da maleta, e passava a agulha pela chama com vagar. A agulha era enorme e, uma vez que a via, já não conseguia desgrudar os olhos dela. Ele ainda fazia mais meia dúzia de gestos, mas eu já não era capaz de prestar a devida atenção. E nesse momento vinha de lá com a seringa em punho e eu começava a gritar porque já tinha percebido que aquele truque nunca resultava – até àquele segundo restava-me sempre uma pontinha de esperança de que parasse, aturdido, e perguntasse, com uma voz que nunca lhe ouvi porque entrava mudo e saía calado:
Onde está a menina Lídia?
Gritava, os músculos contraídos, enquanto o fogo me entrava no corpo. Continuava num pranto até muito depois de ele ter arrumado aquela tralha toda para dentro da malinha preta, sempre em silêncio, como se os meus gritos não o incomodassem. Sentia-me a pessoa mais miserável à face da terra.

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