domingo, junho 03, 2012
Cegueira
O que é que estou a pensar? Olha, estava aqui a pensar em como é fácil sermos cegos. Deixar de ver. Ou ver apenas aquilo que nos interessa. Aquilo que queremos ver. Não estás a perceber onde quero chegar? Eu explico. Imagina uma nódoa numa parede. Uma infiltração de águas, humidade, caruncho, sei lá! Imagina uma dessas manchas a alastrar pelo branco da parede, começando assim pequenina, insignificante, lá ao canto, junto ao teto. No início quase invisível. Com o tempo, porém, vem a certeza. Mas acontece uma coisa estranha. Só tu é que vês a mancha. Mais ninguém. A tua mulher jura a pés juntos que a parede não podia estar mais branca e os teus filhos encolhem os ombros. Convences-te de que são coisas de miúdos e de mulheres, uns e outros geneticamente incapacitados para detetar pormenores deste calibre em materiais de construção. Em matérias de engenharia, como gostas de badalar, é necessária uma substancial dose de testosterona no olhar, e nem o miúdo já tem idade para isso. Contudo, nem os teus amigos se mostram capazes de vê-la. À nódoa. Perplexo, constatas que só tu, e apenas tu, a vês. Começas a duvidar: será que existe mesmo? Não estarás a ver coisas? Enlouqueceste? Cada vez mais incrédulo assistes ao progresso da infiltração. A parede outrora imaculada reveste-se de uma rede de pequenas veiazinhas, umas mais negras, outras esverdeadas, como uma perna jovem atacada de varizes. Nesta altura já percebeste que alguma coisa de muito estranho se passa, e interrogas-te sobre a atitude a tomar. E então tens uma ideia genial. E se fizeres de conta que não vês a mancha? Porque afinal se mais ninguém a vê, provavelmente é uma ilusão dos teus olhos. Provavelmente não existe. Sabes aquela história do barulho que uma árvore faz ao cair numa floresta quando não está lá ninguém? É quase a mesma coisa: da mesma forma que o ruído que não chega aos ouvidos de ninguém não existe, também não existe (não pode existir) uma coisa que ninguém vê. Sim, tu vês, pois, não se pode dizer que ninguém veja, mas é quase a mesma coisa, porque afinal, o que é que representa uma pessoa numa população inteira? Imagina lá, és o único desgraçado à face da terra que vê a mancha na parede; é óbvio que não há mancha nenhuma, uma vez que ninguém, a não ser um doido varrido qualquer que jura a pés juntos que a parede inteira já está completamente carcomida pelo caruncho, a consegue ver. E então, porque não te queres sentir maluco (é claro que não és maluco, isso toda a gente sabe), olhas de novo para a parede e decides que não há nada para ver. E pronto! Fácil, não é? A princípio terás de fazer um esforço considerável para ignorar os estragos cada vez mais evidentes na pintura, e a ameaça latente à estrutura e alicerces da construção. Mas com alguma prática e persistência descobres, com espanto, que não é tão difícil como parece. E que basta querer com muita força e teimosia não ver uma coisa para de facto deixarmos de vê-la. Com o tempo vais convencer-te em absoluto de que nada se passa, tudo está bem, como devia estar, como é teu desejo que esteja. Até ao dia em que os estragos não possam de todo ser ignorados porque ameaçam ruir com o edifício. O que fazer, então? Como dizer à tua mulher e aos teus filhos que a casa, aquela casa que tanto amam, onde se sentem protegidos, o espaço que é para eles um santuário, um templo sagrado que reflete a harmonia familiar, está prestes a ruir? Como destruir-lhes a imagem de solidez e confiança que a casa acarreta? Depois de todo o teu esforço, ao longo dos anos; para quê afinal? Terá sido em vão? O esforço? A forma quase carinhosa com que acreditaste, quiseste acreditar, que tudo estava bem? Que não era nada? Terás acreditado também que se te esforçasses o suficiente para não vê-la, a tragédia deixaria de existir? Foste ingénuo a esse ponto? E agora? Porque teimas em continuar em silêncio, quando sabes perfeitamente que neste preciso segundo a humidade está corroendo letalmente as fundações da tua casa? Ainda acreditas que se não disseres nada, nada acontecerá? Não consegues? Não consegues manchar, estragar o sonho da tua família, a ilusão de que o teto por cima das vossas cabeças é suficientemente sólido e eficiente? De que nunca vos vai faltar o chão? Sentes-te responsável? Mas como, se não és tu, mas o trabalho de uma simples infiltração, o responsável? Se tu até tentaste chamar a atenção para o facto, mas ninguém te deu ouvidos? A única coisa de que podes ser acusado é de não teres resistido ao chamamento, ao encanto da cegueira. Uma cegueira coletiva. Ver apenas o que se quer ver, ou o que nos querem fazer ver. Ou querer ver apenas o que querem que a gente veja. E a gente aceita, porque é tão mais fácil. Entendes o que te digo?
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1 comentário:
Papu, aprecio muito teus pensamentos! Tenho-os acompanhado apenas com a ressalva de sua dolorosa raridade -- coisa que não te hei de pedir que reverta, pois são estes que me encantam, não algum lote de palavras que se inventassem com artificial diligência.
Se posso "carolar", como diriam uns bem-humorados amigos, deixa-me surgerir que leias Romanos 7, 15-23, da Bíblia, bem como o ponto 427 dos Pensées, de Pascal.
Percebe, Papu, que descobriste o Pecado Original.
Terno abraço,
Fernando
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