"A psicanálise é uma auto-análise assistida, o analista só dá uns toques, o paciente é que faz a análise. Como num parto. Quem faz o parto é a mulher, a parturiente; o parteiro interfere se houver alguma coisa, se tudo correr bem, não faz nada. Facilitar o crescimento pessoal, a autodeterminação, a identificação idiomórfica, segundo o seu próprio plano, o seu próprio projeto, e não seguir ideias do analista ou de outra pessoa qualquer. Sou a favor da emigração de que as pessoas se movam, se cruzem. E sou a favor da depressão normal, com revolta e revolução! Devemos zangar-nos com os tipos que nos fazem mal."
(António Coimbra de Matos, entrevista na Pública de 4 de Março de 2012. Para ler na íntegra é só seguir o link)
Foi meu professor na Faculdade. Aprendi muito com ele, tanto nas aulas, como nos seus livros. É uma pessoa de uma simplicidade extrema e, na minha opinião, com um conhecimento profundo da vida. É um educador nato, porque ouvindo-o ou lendo-o ganha-se, aprende-se sempre algo. As suas palavras são matéria prima para o pensamento.
Zangarmo-nos com quem nos faz mal. Aí está uma coisa tão simples, e, ao que parece, tão difícil de conseguir. Porque será? Se é tão óbvio? Deprimirmo-nos normalmente, deixando a porta aberta à raiva, à expressão da zanga, para que a revolta não seja apenas raiva acumulada, pronta a explodir, mas antes uma revolta inteligente, uma verdadeira revolução, uma mudança integral de estruturas podres que não servem. Porque será que é tão difícil?
Existe um paralelo que é quase uma imagem em espelho entre os fenómenos sociais e os fenómenos individuais. Se somos um grupo de deprimidos, patologicamente deprimidos, como é que vamos conseguir, como grupo, sair dos ciclos viciosos dessa mesma depressão? Por outras palavras, se não nos revoltarmos em casa, como é que nos vamos revoltar no país?
Revoltar não é partir a casa, muito menos bater com a porta. Não, a revolta é a zanga. E a zanga acontece todos os dias, porque as pessoas que mais amamos são aquelas que mais nos fazem mal. Ou não é assim? Por isso é preciso zangarmo-nos. Dizer o que nos magoa. Expressar o que sentimos. Deixar tudo em pratos limpos. Ser fiel àquilo que somos e sentimos. Respeitarmo-nos a nós próprios e aos outros. É por aqui que se começa. E é em casa que isto, esta coisa tão simples, tem de começar.
Será que é assim tão simples? Porque para se conseguir expressar os próprios sentimentos, dizer o que se pensa, contestar, argumentar, tem que se saber primeiro o que se pensa, o que se sente. Tem de se ter algo chamado confiança básica naquilo que se é e também nos outros. Tem de se gostar o suficiente de si próprio para que o mal que nos fazem seja percecionado como tal. E quando tal não existe? Quando não temos confiança nem em nós, muito menos nos outros? Quando vivemos afundados em sentimentos de desvalorização pessoal, de inferioridade, de culpa? Quando temos medo de dizer o que sentimos? Quando vemos a injustiça mesmo à nossa frente, e estamos de mãos atadas?
Antes de crescer como povo, precisamos de crescer como pessoas.
As pessoas felizes zangam-se, batem o pé, dão murros na mesa quando é preciso. Porque se amam o suficiente (e aos outros) para não tolerarem injustiças.
Já as pessoas infelizes calam a boca, choram para dentro, e sorriem para que ninguém perceba o que lhes vai na alma. As injustiças são para elas calamidades naturais.
2 comentários:
Tão oportuno esse partilhar de reflexões... pelo menos a sua, para já, que a entrevista de Coimbra de Matos vou procurar ler atentamente (e tão grato por facilitar o link da entrevista na Pública!), com a calma necessária que se deve dedicar a tão delicados assuntos.
Ocorre-me, no entretanto, ao ler estas suas linhas, a velha canção do Sérgio Godinho quando cantava:
«Que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo»
Um grato abraço,
Leonardo B.
Essa canção é uma das minhas preferidas! Obrigada :)
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