Hanifa Assulua, minha mãe, sempre fez de conta que nada sabia. Que era invenção dos vizinhos, delírio de quem queria esconder as suas próprias mazelas. Quando as evidências a esmagaram, mandou-me chamar para, voz tremente, me perguntar:
- É verdade?
Não respondi, olhos presos no chão. O meu silêncio foi para ela a confirmação.
- Maldita!
Sem qualquer reação, fitei-a saltando sobre mim, agredindo-me com socos e pontapés, insultando-me na sua língua materna. O que ela dizia, entre babas e cuspos, era que a culpa era minha. Toda a culpa apenas minha. Bem que Silência já a tinha alertado: era eu que provocava o seu homem. Não se referia a Genito como "o meu pai". Ele era, agora, "o seu homem".
- Vai para fora desta casa. Nunca mais a quero aqui.
***
Não cheguei a sair. Ao contrário, enclausurei-me entre paredes e nunca ninguém se internou tanto numa casa. Hanifa Assulua fez comparecer um feiticeiro e esse uwavi fez-me beber uma amarga poção. Durante um dia inteiro me servi de um pequeno pote de barro. No dia seguinte, o veneno tinha produzido efeito. Eu tinha sido convertida num corpo sem alma. Peçonhenta seiva, em vez de sangue: era o que nas veias me restava.
Minha mãe vingava-se: antes ela transferira a minha doença para a árvore do nosso pátio. Agora ela fazia takatuka ao inverso: deslocava a vida de mim para a árvore morta. O tamarindo, num instante, renasceu verde e altivo. Em contrapartida, converti-me em inanimada criatura. Um único sentido me restava: a audição. No resto, um antigo e congénito escuro me rodeava.
O que Hanifa Assulua pretendia era mais do que me eliminar fisicamente. Morrer era pouco. Havia que apagar o meu nascimento. Os mortos não estão ausentes: permanecem vivos, falam-nos nos sonhos, pesam-nos na consciência. O castigo que me estava reservado era o exílio absoluto. Não de Kulumani, mas o exílio da razão e da linguagem. Fui declarada louca. A loucura é a única ausência perfeita. Na insanidade mental eu estava visível, mas fechada; doente, mas sem ferida; magoada, mas sem dor. "
Mia Couto, A Confissão da Leoa
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