sexta-feira, novembro 02, 2012

A confissão da Leoa

" Hoje, sei: a história da minha infância não é senão uma meia verdade. Para desmentir uma meia verdade é preciso bem mais que a verdade inteira. Essa verdade enorme, tão vasta que me escapava, era apenas uma: não foram os castigos físicos que me fizeram estéril. Essa era a versão oficial inventada por minha mãe. O crime foi outro: durante anos, meu pai, Genito Mpepe, abusou das filhas. Primeiro aconteceu com Silência. Minha irmã sofreu calada, sem partilhar esse terrível segredo. Assim que me despontaram os seios, fui eu a vítima. Ao fim das tardes, Genito migrava de si mesmo por via da lipa, a aguardente de palmeira. Já bem bebido, entrava no nosso quarto e o pesadelo começava. O inacreditável era que, no momento da violação, eu me exilava de mim, incapaz de ser aquela que ali estava, por baixo do corpo suado do meu pai. Um estranho processo me fazia esquecer, no instante seguinte, o que acabara de sofrer. Essa súbita amnésia tinha uma intenção: eu evitava ficar orfã. Tudo aquilo, afinal, sucedia sem chegar nunca a acontecer: Genito Mpepe desertava para uma outra existência e eu me convertia numa outra criatura, inacessível, inexistente.

Hanifa Assulua, minha mãe, sempre fez de conta que nada sabia. Que era invenção dos vizinhos, delírio de quem queria esconder as suas próprias mazelas. Quando as evidências a esmagaram, mandou-me chamar para, voz tremente, me perguntar:

- É verdade?

Não respondi, olhos presos no chão. O meu silêncio foi para ela a confirmação.

- Maldita!

Sem qualquer reação, fitei-a saltando sobre mim, agredindo-me com socos e pontapés, insultando-me na sua língua materna. O que ela dizia, entre babas e cuspos, era que a culpa era minha. Toda a culpa apenas minha. Bem que Silência já a tinha alertado: era eu que provocava o seu homem. Não se referia a Genito como "o meu pai". Ele era, agora, "o seu homem".

- Vai para fora desta casa. Nunca mais a quero aqui.

***

Não cheguei a sair. Ao contrário, enclausurei-me entre paredes e nunca ninguém se internou tanto numa casa. Hanifa Assulua fez comparecer um feiticeiro e esse uwavi fez-me beber uma amarga poção. Durante um dia inteiro me servi de um pequeno pote de barro. No dia seguinte, o veneno tinha produzido efeito. Eu tinha sido convertida num corpo sem alma. Peçonhenta seiva, em vez de sangue: era o que nas veias me restava.

Minha mãe vingava-se: antes ela transferira a minha doença para a árvore do nosso pátio. Agora ela fazia takatuka ao inverso: deslocava a vida de mim para a árvore morta. O tamarindo, num instante, renasceu verde e altivo. Em contrapartida, converti-me em inanimada criatura. Um único sentido me restava: a audição. No resto, um antigo e congénito escuro me rodeava.

O que Hanifa Assulua pretendia era mais do que me eliminar fisicamente. Morrer era pouco. Havia que apagar o meu nascimento. Os mortos não estão ausentes: permanecem vivos, falam-nos nos sonhos, pesam-nos na consciência. O castigo que me estava reservado era o exílio absoluto. Não de Kulumani, mas o exílio da razão e da linguagem. Fui declarada louca. A loucura é a única ausência perfeita. Na insanidade mental eu estava visível, mas fechada; doente, mas sem ferida; magoada, mas sem dor. "

Mia Couto, A Confissão da Leoa

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