15
de Outubro de 2013
10.57
Estamos
prontos para mais uma viagem. Quase que conseguimos sentir a comichão
nos dedinhos, se ponderarmos que meros acessórios de calçado podem
sentir o que quer que seja. Não se iludam, é verdade: ainda que
inanimados, sentimos tudo. E aquela sensação nos dedos de quem se
prepara para dar no pedal durante a próxima meia hora é inequívoca.
10.59
Espera,
algo aconteceu. Ela está de telefone na mão a olhar para o ecrã
com ar interrogativo. Os pés sabem-no, e nós, já se sabe, somos
uma caixa de ressonância destes apêndices corporais. Os órgãos
principais do corpo humano. Qual coração qual carapuça! Não passa
de um músculo, uma bomba em permanente rotina, limitando-se a
engolir sangue e a cuspi-lo de volta à grande e pequena circulação;
como pode saber de alguma coisa se nada retém, mero orgão de
passagem, toma lá dá cá e toma lá outra vez, um operário numa
linha de montagem que, em vez de montar, apenas passa as peças de um
lado para o outro? O cérebro? Sim, pois claro, esse julga-se o rei
da parada, o comandante, sempre a dar ordens. É só isso que sabe
fazer, aliás. Tretas. Quem, afinal, executa as ordens, quem sente na
pele, quem incorpora as vias sensoriais, sensibilidade em
acção-reacção? A força dos braços, das pernas, dos pés? Quem?
11.00
Pronto,
isto vai demorar, ela está a falar com alguém ao telefone. É
estranho que uma actividade tão simples traga tanto alvoroço.
Podemos sentir o modo como os pés parecem ansiosos por se livrarem
de nós. Esta relação dos pés com os artefactos que lhes servem de
casa não é nada fácil, sabem? Se por um lado somos um escudo
protector, um aconchego, uma casa na verdadeira acepção da palavra,
por outro podemos ser vistos como uma prisão, um sufoco, uma
mordaça. O humor dos nossos inquilinos é muito volátil e
oscilante; de um minuto para o outro passam do amor ao ódio, do ai
que bem que se está aqui no quentinho e tal, para o ai que não
posso, tirem-me daqui, preciso de ar, deixa-me em paz, larga-me da
mão (neste caso do pé), desaparece! É uma dor de cabeça,
acreditem. Ou deveríamos dizer dor de calcanhar?
11.02
Ui,
agora está para ali a gaguejar ao telefone. Diz que não acredita,
que não pode ser verdade. Será que morreu alguém? Não nos parece,
porque, lá está, mais uma vez, podemos sentir as vibrações destes
membros irmãos, e elas dizem claramente que o estado geral é de
excitação e alegria. A tristeza provoca uma frequência muito mais
baixa nas transmissões nervosas.
11.10
Ora
pronto, já vamos a caminho. Estávamos a ver que a porcaria do
telefonema não acabava. Mas não estamos nada tranquilos, que a
mulher continua com o sistema desaparafuzado dos carretos. Ela que é
sempre tão calma a conduzir, vai para aqui de coração a sair pela
boca (aqui está outra coisa que demonstra a superioridade dos pés:
estes jamais sairão, ou ficarão prestes a sair, pela boca), e fala
sozinha, ainda por cima. Será que enlouqueceu, a tipa? Ri-se, e
repete, não posso acreditar, não posso acreditar. O que vale é que
não temos tempo para pensar muito, porque quando os pés entram em
acção desta maneira, embraiagem para baixo, travão, acelerador,
(ai como ela acelera, caramba!) a nossa capacidade de raciocínio
diminui consideravelmente. Não sei se nos entendem. Deve ser assim
como tentar equilibrar uma maçã na cabeça, num cavalo a galope.
11.53
Ufa!
Sobrevivemos. Não houve acidentes de percurso, apesar do nervosismo
agora por demais evidente da nossa pessoa. É assim que chamamos à
pessoa a quem pertencemos. Engraçado, não é? Considerados meros
acessórios, bens adquiridos pela vontade própria e o produto
material do vosso trabalho, uma vez que os pés se embrenham nas
nossas entranhas, acontece esse milagre invisível aos olhos comuns
dos mortais: apropriamo-nos das suas sensações, pensamentos,
humores, sentimentos. Numa palavra: da alma. Não sabiam que a alma
mora nos pés? Santa ignorância! Estudem mas é os tipos orientais,
eles já sabiam de tudo há não sei quantos milhares de anos.
12.05
Que
frenesim! O telefone ainda não parou e ela parece uma matraca, e
ainda por cima repete-se, a conversa é sempre a mesma. Nada
percebemos da realidade mundana, por isso não compreendemos o
significado das palavras, são uma espécie de dialecto chinês.
Aquilo que nós captamos são as ondas químicas que descem pela
corrente sanguínea, e aí está toda a informação de que
precisamos para saber do estado de espírito da nossa pessoa. Que se
poderia descrever de eufórico, não fosse pelo atordoamento dos
gestos. As palavras, talvez vocês as consigam decifrar.
12.25
Lá
está ela a repetir pela milionésima vez a história deste homem que
pelos vistos era tio avô da avó e que agora, sabe-se lá por que
carga de água, ficou subitamente tão importante para as pessoas que
insistem em telefonar-lhe. E está a dizer que ainda não tinha
pensado nisso, pois, nós sabemos bem como os seus neurónios andam
atrofiados desde o primeiro telefonema. Ainda não tinha pensado no
facto de ser a primeira mulher a receber o prémio. Isto somos nós a
traduzir, que é para ver se vocês conseguem fazer algum sentido do
que se passa, que como já dissémos as palavras para nós não têm
qualquer significado, são hieroglifos egípcios. Mas somos mestres
em metáforas, lá isso somos. Isto de albergar os pés de alguém
dá-nos subtilezas inusitadas.
12.26
Diz
ela que embirra com essa coisa do masculino e do feminino. Os nossos
inquilinos estão num alvoroço. Eles ouvem tudo, acreditem. Sentem.
Pois esta coisa de ser a primeira mulher a receber o prémio acendeu
uma luz qualquer, a voz dela ficou assim mais acesa, o coração
palpitou. Mas depois a pergunta levou-a para outro território, que é
o da escrita no masculino e no feminino, e isso, desculpem lá, já
não lhe faz sentido nenhum, a escrita não tem género, nem a
literatura, é essa a questão da sua embirração. Já estamos a
aprender alguma coisa, porque a sabedoria, meus caros mortais, está
na planta do pé. Quem melhor conhece as pedras do caminho, a dureza
do chão, a profundidade do rio? É verdade, também temos queda para
a poesia. Todos os dias atracados aos pés dela dá nisto.
13.35
E a
odisseia continua. Com a diferença de que agora, em conjunto com o
som da voz, conseguimos ouvir também os roncos do estômago. A pobre
ainda não comeu nada desde que chegou. Não consegue; está de tal
maneira agarrada ao telefone que parece que a própria vida depende
desse gesto. Pronto, agora desligou e vai para a cozinha. Os nossos
inquilinos estão a ferver tanto que tememos que ela se lembre de se
livrar de nós a qualquer momento; aliás, estranhamos o facto de não
o ter feito mal entrou em casa, como é seu hábito diário, mas isto
hoje tem de se lhe dar um desconto, que nada do que faz ou diz é
habitual. Se tal acontecer, meus amigos, acabou-se o relato, porque
só conseguimos ler-lhe os pensamentos se encaixados nos nossos
devidos lugares.
14.53
E o
telefone toca de novo. E ela desta vez diz para o marido, deixa
tocar! É que, coitada, já interrompeu o almoço umas quatro ou
cinco vezes. Nada a fará levantar-se da mesa neste momento.
Desconfiamos que só mesmo um segundo prémio literário.
23.54
Sobrevivemos
a mais um dia. E que dia! A sério que chegámos a temer pelo pior.
Estamos exaustos de tanta electricidade. Agora, finalmente,
descansamos, no nosso poiso habitual, à porta de casa. Somos mais do
que uma caixa de ressonância, sabem? Somos assim uma espécie de
contentor. Por isso ainda sentimos as vibrações todas dentro da
camurça que nos reveste. A casa está em silêncio, provavelmente
todos dormem, já. Menos nós, que com este tornado entranhado na
pele torna-se impossível. Ainda estamos de nervos em franja com tudo
o que acabou de acontecer. Não foram só os telefonemas. Imagens no
computador. Mensagens da família, dos amigos, e de muitos outros que
nem sequer conhece. Foi isso que a comoveu mais, essa enxurrada de
gente a dar-lhe os parabéns. E as poucas notícias de jornal que
conseguiu ver deixaram-na zonza, com aquela sensação de
irrealidade, de estar a sonhar, de achar não ser possível isto
estar a acontecer. Mas está. Os pés sabem-no, melhor do que
ninguém. Os pés são quem sustenta, quem permite o equilíbrio,
ainda que o chão se incline, ou se abata, ou desapareça. E nós
somos a sua casa, o seu porto de abrigo, o seu aconchego. A cabeça,
coitada, faz aquela pergunta parva, será que o coração aguenta?
Qual quê! Quem aguenta somos nós! Sim, que de tanto os albergar,
chegamos a confundir-nos com eles, os nossos inquilinos. Confusão de
identidades. Isto agora dava para aqui uma palestra de Psicologia,
mas essa parte, desculpem lá, é areia de mais para a nossa
trotinete. Essa coisa das psicologias fica mesmo só lá na cabeça.
Pobre cabeça.
(publicado no Diário do Jornal de Letras de 30 de Outubro de 2013)
1 comentário:
E não é a escrita, em si mesma, um modo de sobrevivência?
Parabéns!
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