segunda-feira, setembro 19, 2005

O AMOR E O CIÚME

E isto leva-nos ao ciúme, um dos sentimentos mais fora de moda do nosso século. Hoje em dia é antiquado ter ciúmes, as pessoas negam-no e escondem-no, têm vergonha de demonstrá-lo. Como se toda a gente não os sentisse.

Aqui tenho de abrir um parêntesis. Porque se calhar há mesmo quem não os sinta ou se convença disso. Mas olhem, para mim não sentir ciúmes é a mesma coisa que não sentir frio, ou fome, ou sede. E mais. O ciúme é um sentimento normalíssimo, humano, e até indispensável e fundamental no nosso crescimento e desenvolvimento enquanto pessoas.

O ciúme é secundário ao amor, sentimos ciúme em relação a alguém que amamos. Mas o ciúme é mais do que o medo de ser abandonado ou a antecipação da dor da perda: surge quando vemos a pessoa que amamos dar o amor que achamos que deveria ser nosso a outra pessoa. Ficamos com ciúmes do outro porque queríamos ser nós a receber o amor daquela pessoa, queríamos estar no seu lugar. O ciúme pressupõe sempre a existência de um terceiro. Um triângulo, portanto.

Quando nascemos ainda não sentimos ciúmes porque ainda não distinguimos as outras pessoas de nós. O bebé recém-nascido vive na ilusão de que a mãe ou a pessoa que cuida dele faz parte de si mesmo. A mãe existe só para ele, é só dele, e dá-lhe todo o seu amor e o seu alimento. A mãe é um prolongamento de si mesmo e funciona como um continente onde ele pode habitar, sonhar, sentir-se seguro e protegido, crescer. Esta ilusão é fundamental, pois é ela que nos permite sentir-nos especiais, únicos, amados incondicionalmente, apreciados e eleitos. E é uma ilusão, mas não é uma mentira, pois é uma ilusão partilhada e sentida pela mãe e pelo bebé. Também a mãe participa e habita nesta ilusão: ela sente um amor incondicional pelo seu bebé, sente que ele é o centro da sua vida, que seria capaz de morrer por ele, e que ele é o mais lindo e o mais querido do mundo. E essa é a verdade para cada mãe.

É claro que certas circunstâncias da vida da mãe, como por exemplo uma depressão pós-parto, podem interferir seriamente neste espaço de ilusão e troca de emoções. Por isso se diz, em Saúde Mental, que a patologia materna pode afectar o desenvolvimento do bebé, porque pode privá-lo de viver experiências fundamentais à formação da sua personalidade.

É no contexto desta ilusão que surgem os primórdios do ciúme. Porque de facto a mãe não vive só para o bebé, esta é a realidade. E esta realidade vai-se imiscuindo naquela relação a dois. O que o bebé sente é que há alguma coisa ou alguém que o impede de desfrutar da presença constante da mãe. Há alguma coisa que lhe rouba a mãe. E protesta.

Depois, mais tarde, ele vai perceber que não é o único receptor do amor da mãe e do pai. Aqui ele já se relaciona com as pessoas separadamente, mas sempre num registo a dois. O ciúme irrompe em força quando ele percebe que os pais também têm uma relação entre si, da qual ele está excluído. Ele percebe então que a mãe, além de o amar a ele, também ama o pai, e que com o pai acontece a mesma coisa. Ou seja, ele não é o centro do afecto das pessoas que ama. É esta vivência dolorosa de desilusão (porque de facto ele vivia na ilusão) que gera o ciúme.

Vivência dolorosa mas fundamental e imprescindível para o crescimento. Se ficássemos eternamente no registo da ilusão nunca daríamos o salto para a vivênciade um amor adolescente e mais tarde adulto. Aprender a viver a três, ou seja, a gerir e diferenciar os afectos, e a vivê-los na sua plenitude, é indispensável ao nosso amadurecimento como pessoas.

E as situações de ciúme multiplicam-se pela vida fora, se olharmos à nossa volta: a relação entre os pais, a vinda de um irmão, a preferência do nosso irmão por um primo ou uma prima, enfim, todas as situações em que nos sentimos preteridos em favor de outro. E quem disse que entre amigos não há ciúmes? Se há! Não se lembram daquela sensação de tristeza quando o nosso melhor amigo elegia outro melhor amigo e nós éramos passados à categoria de amigo comum? Vá lá, olhem para a vossa infância. Com olhos de ver.

Até os animais sentem ciúmes! Já experimentaram fazer uma surpresa ao vosso gato de estimação, e aparecer lá em casa com um gatinho bebé ao colo? Tadinho do bichinho... Pois é, até eles sentem. Como queremos nós não sentir?

É a vivência do ciúme que nos permite sentir, de novo, únicos e especiais, mas desta vez já sem ilusão. Porque o que nos faz sentir-nos amados, agora que já não somos bebés, é a consciência de que a pessoa amada também ama outros, muitos outros, mas escolheu-nos a nós. Nós somos especiais e fomos eleitos. E o facto de amar outros não significa que diminua o amor que tem por nós. É isso que a criança precisa de sentir em relação aos pais. Que, apesar do amor entre eles, e do amor que cada pai dedica a outros irmãos, ela é amada com a mesma intensidade, por aquilo que é. No fundo, que o amor dos pais por ela não perdeu qualidade. E que ela continua a ser especial e única para cada um.

É claro que há ciúmes exagerados, até patológicos. Que em vez de estimularem uma relação e de lhe dar um abanãozinho de vez em quando, antes a ensombram com uma espécie de mania da perseguição. O nosso amado ou amada não pode olhar para outra pessoa na rua, ou na televisão, não pode falar nem relacionar-se com alguém do sexo oposto, que nós sentimos logo a facada da traição na garganta. E não é um medo, é quase uma certeza macabra. Pois é. Acho que neste caso o melhor é procurar ajuda. E esta pode ser a herança legada por uma ilusão mal vivida, lá atrás. É verdade. Porque quem nunca se sentiu de facto único, especial, quem nunca sentiu que a pessoa amada é só nossa e de mais ninguém, quem nunca se sentiu o centro do afecto e do amor da mãe enquanto bebé, dificilmente se sentirá especial e eleito mais tarde. Porque a necessidade de nos sentirmos amados incondicionalmente e que o nosso amado só tenha olhos para nós é uma necessidade infantil, que tem de ser vivida na altura certa. Como adultos não precisamos que o nosso amor só tenha olhos para nós, não senhor. Aliás, se só tivesse olhos para nós, não nos poderia ter escolhido de entre todos os outros.

Como adultos, o que nos une é o amor, mas o amor não é uma coisa que se possua. Há muita gente que sente assim, e mal para eles. Têm um carro, e uma casa, e muitas coisas mais, e têm também uma mulher ou um marido. Mas as relações não se podem ter e arrumar na prateleira ou pôr a enfeitar a casa como um bibelôt ou uma jarra de flores. O amor é um ser vivo que precisa de ser alimentado, mimado e cuidado, senão morre, como qualquer ser vivo. O amor não se compra nem se possui, sente-se, e partilha-se, e cresce, e floresce, e aquece-nos e dá-nos a magia e o sentido da vida. E é eterno, sim, enquanto dura. Não há segredos para durar menos ou mais, ou melhor, o segredo está em não nos esquecermos de alimentá-lo, de regá-lo todos os dias, de o deixar ao sol e à chuva como as plantas, e protegê-lo de ventos fortes e tempestades e bátegas. E, quem sabe, um dia ele cresce e cria raízes, e ergue-se em tronco e ramos e folhas largas que dão sombra e flores de perfumes súbitos. E pode viver centenas de anos, sim, como algumas árvores.

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