segunda-feira, setembro 05, 2005

ONDE ESTÁ A NOSSA HUMANIDADE?

New Orleans, Agosto de 2005. Imagino-me um habitante dessa cidade banhada pelo mar, imponente nas suas avenidas largas e edifícios magestosos. Imagino-me velha, pregada à cadeira de rodas que me acompanha há já quase uma década, no olhar ainda a antiga vivacidade de quem não desiste assim tão facilmente da vida. Imagino-me a viver sozinha numa casa de madeira, a construção frágil, os alicerces corroídos por alguma humidade, nas traseiras um quintal onde antes houvera uma horta regada e cuidada diariamente pelo meu homem, já falecido, e depois por mim, todos os dias com as costas mais curvadas e com as mãos mais deformadas pela artrite que acabou de vez com as minhas articulações e com os meus movimentos. Imagino-me deitada numa cama, tentando acalmar as dores à custa de massagens com pastas feitas à base de ervas que uma boa vizinha me faz, todos os dias, enquanto cuida da casa e me traz alguma coisa para comer. Imagino-me sem família, o último filho partiu há muito para longe e nunca mais deu notícias, os vizinhos fazem as vezes de primos e irmãos, numa complexa rede de afectos que semeei nesta rua ao longo dos anos. Imagino-me obstinada, agarrada à minha casa e às minhas paredes, eu daqui não saio, já vivi muitas tempestades e furacões, já passaram por mim muitos terramotos e maremotos e nenhum me conseguiu derrubar, não vai ser este, com nome de mulher, que me vai fazer fugir de casa com o pânico nos pés. Até porque mesmo que quisesse não poderia ir-me embora, para onde? E como? Imagino-me a resistir à persuação da vizinhança, a tia não pode aqui ficar, tem de vir connosco, vamos todos, aqui na parte baixa vai ficar tudo alagado, e eu que não, se é para morrer prefiro morrer dentro das minhas velhas paredes, na minha casa. Imagino a minha teimosia a ceder lentamente às primeiras rajadas de vento, e os vizinhos a levarem-me em ombros, com a chuva já a cair, atravessar ruas onde já não se vê vivalma até ao monstruoso estádio olímpico transformado em abrigo para milhares de gente sem tecto. Imagino a confusão, os gritos, o pânico, a espera para entrar, o cansaço, a exaustão, os nervos à flor da pele. Imagino-me a desejar a morte em vez deste espectáculo terrível, desta sensação de que nada voltará ao que era, desta ansiedade antecipada que morde a boca do estômago. Imagino-me deitada, no meio de milhares (milhões?) de outras pessoas, debaixo de cobertores que não aquecem, nos ouvidos os gemidos, as vozes, os gritos de milhares de pessoas em sobressalto, tentando dormir para esquecer mas sem conseguir sequer fechar os olhos, nos ouvidos o uivo do vento que cresce lá fora como um rugido de um animal selvagem, e varre ruas inteiras, e derruba árvores, e levanta carros e casas inteiras, e transforma o mar num gigante enraivecido de punhos em vagas de centenas de metros que arrastam barcos e árvores com a força brutal de todas as marés vivas. Imagino-me tolhida de dores e de agonia, debaixo do cobertor, tapando os ouvidos por já não suportar ouvir o rugido do vento, nem as vozes das pessoas, nem o choro de crianças e velhos e novos e de toda a gente. Imagino a manhã do dia seguinte, quando a força do vento amainou e a claridade entrou pelos vidros das janelas do tecto, despertando todos, não do sono, mas do desespero em que se tinham embalado durante a noite, os olhos teimosamente abertos na escuridão e a mente toldada pelas brumas da consciência desperta, pelo arrepio da adrenalina descontrolada, pelo medo instalado na barriga. Imagino essa manhã seguida de outras manhãs e outras noites, eu sempre deitada devido à imobilidade, o cobertor molhado de urina, deitada em cima da minha própria merda acumulada dia a dia no chão. Imagino o choro das crianças, cada vez mais desesperado e angustiado, o choro das mulheres, o choro dos homens, de milhares (milhões?) de bocas em súplica. Imagino os dias a passarem ali, debaixo daquele cobertor que não aquece o corpo, com o frio a entranhar-se-me nos ossos e a gelar-me as articulações num punhal de dor. Imagino-me a nem sentir essa dor, com os sentidos adormecidos pelo cansaço, totalmente vencida pelo medo, pela angústia, pelo desespero de me saber sem casa e sem nada. Imagino a sede, uma garra a apertar a garganta, primeiro devagarinho, depois com uma crueldade sequiosa. Imagino aquelas pessoas todas ali, o cheiro dos corpos, do suor, do cansaço, dos excrementos, da urina, misturado ao cheiro das águas que se estagnaram em poças e lagos quando a subida da maré acalmou. Imagino o ar pestilento a entrar-me pelas narinas, imagino a cara do desespero estampada em milhões de rostos e de gritos e de lágrimas à minha volta. Imagino a fome a chegar primeiro aos estômagos das crianças e dos bebés, pois que aos mais velhos a ansiedade acaba por ocultá-la, sentida apenas na fraqueza súbita das pernas ou numa sensação repentina de desmaio ou irrealidade. Imagino-me a fechar os olhos e a não querer ver nem viver todo aquele horror, e a desejar que a morte me leve de vez. Imagino a sede a apertar cada vez mais a garganta, e a loucura a espalhar o seu charco nos olhos em redor. Imagino-me tão fraca, ao fim de quatro dias ali deitada debaixo do cobertor transformado em papa, de cheiro nauseabundo, com a garra da sede a estrangular-me e a deixar os meus olhos vítrios. Imagino a morte a chegar, ninguém a dar por ela, e a deixar-me ali, mais um corpo deitado, um corpo de velha, só, abandonado e ressequido. Afinal, foi preciso este, com esse nome de mulher, Katrina, para me levar.

Depois imagino o meu espírito erguendo-se do meu corpo e vagueando pelo ar, primeiro até ao tecto daquele edifício gigante e depois cá para fora, para a rua. Imagino-me a olhar em volta e não reconhecer a minha cidade. Tudo está desfeito, árvores derrubadas, carros virados para cima, casas destruídas, inundadas, ruas transformadas em rios, casas a arder, o fogo engolindo os alicerces arruinados, indiferente, o fumo a subir em jorros de tinta negra para um céu cinzento de nuvens, onde o sol mal se atreve a espreitar. Pessoas a deambular pelas ruas, com ar perdido, pessoas cheias de sede, à procura de água, pessoas à procura de comida para os seus filhos, pessoas enlouquecidas à procura dos filhos, crianças à procura dos pais, pessoas à procura de parentes e vizinhos perdidos, pessoas ainda esmagadas dentro de suas casas transformadas em destroços, pessoas a serem resgatadas por helicópteros, pessoas enlouquecidas pela sede e pela fome a partirem montras de lojas e de supermercados atulhadas de comida e água, e homens de metralhadoras na mão, muitos, tantos, saídos não se sabe de onde, a atirar para outros homens, mulheres, velhos, velhas, sempre o cano da arma apontado às cabeças. Vejo chegar camiões do exército cheios de homens armados, muitos homens que empunham armas e formam coluna em frente às lojas, pelas ruas inundadas, com a água a chegar-lhes ao joelho, a cara fechada, as mãos nervosas empunhando a metralhadora, e o cheiro nauseabundo das águas paradas misturado com o terror atroando os ares. Vejo pessoas a serem mortas no chão da rua, no chão imundo, cheio de água e de lama das inundações, pessoas a serem mortas por tentarem arranjar comida e água, pessoas a serem mortas com o desespero nos olhos, e a loucura à sua volta, solta, como um fantasma, a dar gargalhadas no ar.

Imagino-me a ver tudo isto, lá de cima, do céu sempre igual, a ver os helicópteros a chegarem, finalmente, ao fim de tantos dias, a ver a ajuda que tardou a chegar, e tantas vidas lá em baixo a serem ceifadas, já não pela fúria da natureza, mas pelo ódio, pela fúria, pela loucura dos homens.

Onde estás, humanidade?

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