sexta-feira, outubro 21, 2005

O PRIMEIRO DIA

A primeira vez que ouvi Sérgio Godinho tinha 9 anos e apaixonei-me pelas músicas e pelas letras. Ainda hoje me espanto com o facto: o que é que as músicas me podiam dizer, a mim, uma criança? Mas ainda me lembro como se fosse hoje, de quando comecei a ouvir a cassete que os meus pais tinham trazido com mais umas de músicas infantis. Tinhamos comprado o nosso primeiro leitor de cassetes (nosso, da família), e o album era o Sobreviventes. Eu vibrava realmente ao som da voz forte a cantar: "Vi-te a trabalhar o dia inteiro, contruir as cidades p'ròs outros, carregar pedras, desperdiçar, muita força p'ra pouco dinheiro, vi-te a trabalhar o dia inteiro, muita força p'ra pouco dinheiro (...)" e fazia coro, cantava com ele e depressa sabia as letras todas de trás para a frente. Depois desse álbum seguiram-se outros que eu ouvia de uma ponta à outra, todas as noites adormecia ao som das músicas no leitor (muito baixinho, para não incomodar os vizinhos) e ficava também a cantar baixinho na escuridão.

No dia em que fiz 10 anos ele cantou ao vivo na Festa do Avante, e eu fui vê-lo, depois de uma grande birra em que lá acabaram por me fazer a vontade, às cavalitas do meu pai (que foi o único a acompanhar-me). O palco ficava lá muito ao fundo, e separava-nos um mar de cabeças pequeninas na escuridão, e o Sérgio era um pontinho minúsculo num rectângulo longínquo de luz, mas eu fiquei vidrada nas canções e no som das músicas que eu sabia de cor. Cresci a ouvi-lo cantar e mais tarde no meio da adolescência o entusiasmo abrandou, mas a sua música é sem dúvida um marco na minha vida.

Ouvi-lo cantar faz-me sorrir (principalmente as suas canções mais antigas) porque quando o oiço volto a ouvi-lo com os ouvidos de criança. Como criança não entendia todas as dimensões da profundidade das suas letras, e algumas metáforas eram levadas à letra, o que às vezes emprestava um sentido diferente às coisas que ouvia. Mas a musicalidade e a força da mensagem de alguns temas tocaram-me desde sempre, e de uma forma muito profunda. E à medida que fui crescendo fui ganhando novos sentidos de percepção, e quando oiço algumas músicas, hoje, como esta, O Primeiro Dia, sinto como se reencontrasse um velho amigo de infância que sempre me acompanhou.

2 comentários:

M disse...

É incrível a semelhança entre algumas das nossas vivências :-)

Lembro-me que a interpretação literal de "vivo com uma faca espetada nas costas, ai, que bom que é" me deixava particularmente angustiada :-))

De resto, a melodia, a voz dele, o próprio disco, o cheiro do cartão da capa, as letras impressas, tudo isso são recordações mágica de uma paixão de infância.

papu disse...

Eu não tinha o disco, tinha de me contentar com a capa da cassete... mas aposto que tb tinha um cheiro especial... :)

Tb me lembro bem dessa música. E curtia à brava aquela parte do um dois um dois três de oliveira quatro!!!

E havia imagens muito fortes q tb me deixavam angustiada mas ao mesmo tempo era como se através delas ganhasse um outro conhecimento da realidade, que a minha idade ainda não alcansava pela experiência... era como abrir uma janela para o mundo...

"prá rua saiem toupeiras
entra o frio nos buracos
dorme a gente nas soleiras
das casas feitas em cacos
em troca de alguns patacos..."

e há outros exemplos, muitos...

beijinhos