O David trouxe da viagem uma caneta mágica: na verdade, não é uma caneta, apesar de ter a forma de uma. Se espreitarmos por um dos lados, é um telescópio, se espreitarmos do outro, é um microscópio.
Eu ainda não tinha percebido a piada daquilo, até que ontem me entretive a espreitar os meus dedos. E o que vi deixou-me assombrada. Montanhas escarpadas, rugas gigantes como gargantas fundas, escaras abertas, caminhos cheios de pedregulhos, como escamas de peixe, leitos de rios ressequidos e engelhados. Uma coisa monstruosa. Enrugada. Velha.
Já não consigo olhar para as minhas mãos sem me lembrar que cada linha minúscula é um vale imenso de secura e células prematuramente mortas. Na verdade, nem imaginamos a quantidade de cadáveres que carregamos connosco, no segredo da flor da pele. E ainda bem. A beleza é algo que exige a distância de um olhar míope. Olhado à lupa, o nosso corpo é apenas carne a morrer lentamente, todos os dias. A morrer e a viver, claro, porque à lupa não se notam grandes diferenças entre uma e outra; ou melhor, só olhadas de perto é que se percebe que ambas se reproduzem continuamente, num abraço simbiótico e interminável.
Agora, quando olho para a minha mão, já sei que estou longe dela, muito longe mesmo. E quando olho para a minha cara no espelho, a mesma coisa. E ainda que a mão toque o rosto, ou a perna, ou o pé, nunca estará realmente perto. A distância é aquilo que nos permite olhar, sentir, cheirar, sem nos afogarmos no esgoto da miséria material da nossa existência. A distância é aquilo que nos permite ser aquilo que somos - sem ela seríamos apenas bocados de carne ambulantes, sem alma nenhuma.
1 comentário:
Estava agora a ler-te e recebi o teu comentário sobre o desenhar da Camila, mas sobre isso falarei na Arca.
Aqui quero dizer-te que, mais uma vez, senti-me tão sintonizada contigo ao ler este teu post. Não sei se é por ter completado mais um ano de vida por estes dias ou dos dias que passam cada vez mais depressa, mas estou a começar a tomar consciência, seriamente, que estou a envelhecer e não gosto, não me vale de nada, mas, mesmo assim, não gosto :). Essa decadência que viste à lupa vai-se tornando cada vez mais visível a olho nu e é triste. Mas o melhor mesmo é não perder muito tempo a pensar nisto, gozarmos o dia-a-dia e deixarmos a nossa miopia fazer-nos andar felizes e contentes! Um grande beijinho.
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