sábado, junho 14, 2008

O homem do xadrez

Ficava horas intermináveis, sentado à mesa daquele bar, tendo por única companhia um tabuleiro de xadrez. Jogava. Jogava em silêncio, lentamente, como quem peneira a luz da tarde até esta se transformar numa poeira fininha de estrelas, lançada para cima do incêndio ténue do crepúsculo. E assim, no silêncio de gestos precisos, o tempo passava, como passavam os burros no calor da estrada, lá fora, carregados de sacos de cereais e legumes no lombo, acompanhados por homens de idade curvilínea, como as costas; ao mesmo tempo que a tarde se demorava nos pequenos remoinhos de vento seco que levantava a poeira do chão. Jogava sozinho, contra si mesmo. Movia uma peça, e depois, com um suspiro, tomava a posição do adversário. Mas não se limitava a tomar as peças opostas, não; aquilo exigia uma transacção plena de estados opostos de alma. Para nos defrontarmos connosco próprios precisamos de vestir a pele do inimigo, dizia para os seus botões, enquanto os desabotoava. Sim, que o xadrez é muito mais que um jogo inocente de estratégias; o xadrez, é, acima de tudo, a essência da estratégia. Estratégia de quê?, ecoava-lhe o pensamento, e ele encolhia os ombros, sei lá de quê, para o caso pouco importa, o que importa (e o peito dilatava devido ao ar que entrava, sôfrego, pelas vias respiratórias abertas) é a eficácia da estratégia. Ponto final.

Fazia estes diálogos consigo mesmo e sorria em surdina, sem precisar de curvar os lábios, que era como se habituara desde sempre a sorrir. Hoje, se quisesse sorrir mesmo, um sorriso cravado nos músculos do rosto, a arrepanhar a boca, não conseguiria. Teria de fazer um sorriso forçado, daqueles que costumamos ensaiar ao espelho, e que nunca se compara a um sorriso espontâneo, pois os músculos responsáveis por este são movidos por um reflexo involuntário. E depois de desabotoado o casaco, despia-o, pousava-o nas costas da sua cadeira, e vestia o outro, o que estava colocado nas costas da cadeira do presumível adversário. Seguidamente, sentava-se na cadeira adversária, e ficava a estudar o tabuleiro e a situação das diferentes peças, enquanto se demorava a enrolar um cigarro (não fumava, quem fumava era o adversário). Então acendia-o com vagar, e puxava uma fumaça que o fazia soltar uma tosse cavernosa. E assim, completamente embrenhado no jogo e nas mudanças de campo, espalhava as horas no chão e ficava a vê-las rolar, como moedas lançadas no tampo de uma mesa. Não saberia dizer quantas eram, sabia apenas que, todas juntas, caberia nelas a vida inteira. Mas para ele a vida não era uma coisa inteira. A única coisa íntegra que ele conhecia (íntegra era uma palavra muito mais apropriada que inteira) era a tão almejada estratégia.

Sem comentários: