domingo, junho 15, 2008

Outros tempos

Também tenho umas saudades parvas que, volta e meia, me roem os ossos, mas com essas posso eu bem. São saudades de coisas parvas, mas que antes faziam todo o sentido e percorriam os pontos cardeais de norte a sul dos dias, espreguiçando-se no langor do oriente e repousando num sono sem nuvens nos últimos suspiros do ocaso. Eram tempos de muitas noitadas. Às vezes trocávamos o sentido dos ponteiros do relógio, e o tempo começava a andar para trás, de tal forma que o dia entrava pela noite dentro e a noite era quando o sol do meio-dia dilatava as pedras da calçada. Às vezes fazíamos directas atrás de directas e as manhãs surpreendiam-nos com olheiras e cabelos desgrenhados e ataques de riso que nos faziam parecer dementes aos olhos de quem se apressava nas ruas para entrar a horas no emprego, e que eram muito mais explosivos do que aqueles provocados pelas pedras que apanhávamos. De outras vezes ficávamos a estudar pelas noites dentro, na véspera das frequências, e às tantas já não dizíamos coisa com coisa e gargalhávamos sem eira nem beira, mas, caramba!, no outro dia, apesar de não estarmos frescas, sentávamos diante da temida folha de perguntas e os raciocínios saíam-nos da ponta dos dedos como se tivéssemos dormido a noite inteira. Bom, pelo menos era o que nos parecia, na altura. Estudávamos sempre na tua casa, que partilhavas com outras colegas de curso, no bairro de ruas paralelas e transversais cruzando-se em paralelipípedos mais ou menos regulares junto ao liceu Filipa, para onde à noite as putas levavam os clientes. De outras vezes, sem calhamaços para estudar, cantávamos pela noite dentro e não deixávamos os vizinhos dormir, mas nem nos importávamos porque nessa altura não podíamos supor o estrago causado por umas poucas horas sem dormir numa única noite de uma vida anónima. Não tínhamos filhos para deitar sem sonos para velar nem contas para pagar nem dia para receber nem bocas para alimentar nem paz para almejar nem pão para pôr na mesa. Aliás, nessa altura, quanto menos paz, melhor. Era assim, e era bom.

Sem comentários: