sábado, janeiro 30, 2010

Gira-mundo

Todos os dias fico à espera que ela ponha a máquina a lavar. Enquanto espero, vou-me abanando para a frente e para trás. O movimento repetitivo do meu corpo acalma-me. Quando fico quieto o ar pesa-me toneladas nos ombros. O barulho da máquina a trabalhar também me acalma. E ver a roupa lá dentro a girar ainda mais. Posso ficar horas assim, que não dou pelo tempo passar. A minha cabeça começa a girar, também, e os pensamentos ficam todos misturados. É quando posso ter paz, pois de outro modo os mesmos pensamentos, afastados uns dos outros e claros como um dia de sol, aquecem-me de tal maneira os ossos da cabeça que tenho de meter algo na boca para não gritar. Vai tudo o que estiver à mão: um bocado de pano, uma almofada, um brinquedo, um sapato, um prato, um copo, uma colher, um garfo, uma faca. Uma vez fiquei com um copo esmigalhado dentro da boca e tivemos de correr para o hospital. Só me lembro dos cacos de vidro a espetarem-se-me na boca e a espalharem-se por todo o meu corpo como agulhas. Não me lembro de mais nada. Agora já não há facas nem garfos nem outros objectos perigosos ao meu alcance. Eu gosto de segurar objectos duros na mão, ou de apertá-los com os braços. Um dos meus brinquedos preferidos é um velho despertador, daqueles com ponteiros, com duas campainhas que faziam um som estridente na parte de cima e dois pés em baixo. Já não trabalha. Bem que tentaram tirar-mo, mas eu gritei tanto e bati tanto com a cabeça na parede que acabaram por desistir. Quando o seguro de encontro ao peito, com força, fico com as mãos vincadas pelas arestas e o peito marcado pelos sulcos dos pés. Gosto daquele contacto frio e forte. É como olhar o movimento da roupa na máquina: entro para dentro de uma cápsula onde estou só eu, mais ninguém. Não tenho de fugir dos olhares nem dos outros corpos. Tenho medo dos olhos que sempre teimam em olhar para dentro de mim, remexendo-me por dentro, espetando-se na minha pele como facas. As pessoas metem-me medo, com as suas vozes esganiçadas, os seus gestos moles, os seus olhos fundos como precipícios. Se me tocam, então, perco as estribeiras. As outras mãos ardem-me na pele, cortam-me, ferem-me, como se dos dedos escorresse ácido ou partissem lâminas afiadas. Lâminas que penetram fundo, que não se limitam a rasgar a carne mas a desfazê-la completamente. A envenená-la. Nem as facas cortam dessa maneira. As facas apenas abrem golpes na superfície; golpes que sangram o veneno e aliviam a dor.

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