sábado, janeiro 16, 2010

Gritos

Da casa do lado ouvem-se os gritos das crianças. Os gritos ecoam-lhe dentro da cabeça, misturados com os sons da música que lhe chegam da parede oposta, da casa do vizinho do outro lado. Todos os dias a mesma batida, que enjoo. A cabeça parece que lhe vai estalar. Tem o nariz e os ouvidos completamente entupidos, o que faz com que os sons lhe cheguem de longe, aumentados exponencialmente, com o mesmo efeito de quando estamos dentro de uma banheira cheia de água e mergulhamos os ouvidos. Agora ouve-se a máquina da roupa a centrifugar, da mesma casa onde os gritos das crianças alcançam proporções e decibéis inesperados. Leva as mãos aos ouvidos. Não aguenta mais. Parece que o cérebro derrete dentro do crânio. A dor é inimaginável. Vai até à parede e encosta a cabeça. Junto da parede ainda se ouvem mais os gritos. E a barulheira infernal da máquina. Quer gritar. Não lhe sai nenhum som da garganta. Em desespero, bate com a cabeça contra a parede, primeiro a medo, depois mais confiante. Cada pancada provoca uma convulsão que, de certo modo, atenua a dentada aflita que lhe devora a razão. Continua a bater com a cabeça na parede dura, e a cada pancada sai-lhe um grito surdo e seco da boca, um pequeno grito por onde pode aliviar a outra dor, aquela que, sim, enlouquece. E assim uma dor suplanta a outra. Mas tem de continuar, sem parar, cada vez com mais força, pois a primeira dor teima em persistir. Cada vez mais alto. Cada vez mais forte. E é então que os seus gritos suplantam tudo, os sons da musica, os gritos das crianças, os gritos da vizinha, os gritos da máquina da roupa.
Faz-se silêncio, por fim.
Um dia, quando estranharem a sua ausência, a polícia arrombará a porta e encontrarão o que resta do seu grito.

1 comentário:

Maria João disse...

Parabéns pelo texto, adorei!!
O sentimento que está aqui implícito é-me bastante familiar, e não conseguiria por palavras minhas descrever melhor os momentos de desespero (e quase loucura!) que tenho passado dentro da minha própria casa, desde que se instalou um ATL no meu prédio, e que passou a utilizar o terraço exterior para as atividades lúdicas das crianças, durante DIAS INTEIROS...