segunda-feira, março 29, 2010

Do silêncio e das lágrimas e de coisas que nos vêm à cabeça

Entretanto, também, continuo a deitar-me no divã. Três vezes por semana. Não sei porque o faço, nem para quê. Uma espécie de dependência? Nós, as mulheres, temos este hábito de desenvolver dependências relacionais com quem nos escuta. Ou finge escutar, o que vai dar ao mesmo. O acto de escutar tem tanto de pretensioso como de passivo. Passivo, porque não se faz absolutamente nada; pretensioso, porque nunca ninguém conseguirá essa proeza de realmente escutar o outro. Nós ouvimo-nos a nós mesmos, nas histórias que nos contam. Ouvimo-nos e vemo-nos em tudo o que olhamos e ouvimos do mundo. No fundo, não passamos de um bando de egocêntricos. Outro dia deu-me para chorar. Quebrei o silêncio em que mergulhava há tanto, vim à tona e disparei aquilo. Aquelas palavras. Ouvirmo-nos dizer o que vimos dizendo há anos, sempre para dentro - sempre sem voz - é um choque brutal. Reconhecer as dores que já sabemos de cor - e que nos trazem o coração espremido no peito - mas que nunca nos ouvimos dizer pode deixar-nos à beira do desespero. Ou das lágrimas. Chorei, e o silêncio embalou-me as mágoas. Foi bom aliviar o peito. Porém, quando me levantei para te apertar a mão, senti-a suada, e detestei-te, no mais fundo de mim. Imaginei o teu olhar a comer-me as pernas enquanto me esvaziava, líquida, à tua frente. Jurei não voltar. Mas voltei. Volto sempre. Pior que uma droga, ter alguém que nos oiça. Pior ainda, alguém que nos ouve o silêncio, sem ceder à urgência de o encher com um significado qualquer que nunca é o nosso.

Precisava de chorar. Chorar, só; deixar as lágrimas arrastarem a mágoa e quedar-me na quietude da maré. Poucas pessoas sabem deixar-nos chorar. A maioria apressa-se a tentar reconfortar-nos com palavras de compaixão, tentando a todo o custo, ainda que disso não se apercebam, que as suas parcas tentativas de compreensão estanquem a torrente das lágrimas. Muito pouca gente aguenta. E muito menos ainda sabe a raridade que é a dádiva do choro - alguém que oferece o choro a quem chora - toma, é teu, chora-o - e ao mesmo tempo o recebe - dá-mo, dá-me as tuas lágrimas - sem agradecer. Apenas recolhendo as mãos e deixando o rio estancar por si. Sem pressa nem urgência. Sem projectar a culpa - que fácil que é projectar a culpa nesta situação! Quase sempre quem chora se sente culpado - porque chorar é dar parte de fraco, é assumir a impotência, é uma vergonha, é infantil, é patético, é irritante, é, enfim, uma série de coisas desagradáveis e, em última análise, contém em si uma acusação muda - se choramos é porque alguém nos magoou e se choramos para alguém estamos implicitamente a imbuir esse alguém da responsabilidade do nosso choro. Enfim, uma teia tão intrincada que não admira porque é que a maior parte das pessoas prefere entregar-se às lágrimas sem testemunhas.
Porém, a dádiva do choro é talvez mais importante que a do riso. Poder chorar com alguém - saber que há quem recebe as nossas lágrimas sem nos acusar, sem se sentir culpado, sem nos achar fracos - sem achar nada, apenas estar ali, a escutar-nos os soluços - é talvez a maior prova de humanidade e comunhão possível de sentir. Foi o que fizeste. Também não admira, foste bem treinado para isso. Aposto que quando a tua mulher chora não te comportas assim. Fiquei ali deitada no divã, alagada no meu próprio ranho - no meu próprio espanto - e tu não fizeste um gesto. Não disseste uma palavra. Deixaste-me ir ao fundo das lágrimas. E que bem que me souberam as minhas lágrimas. Que bem que me fez chorar. E como te agradeci o silêncio.
Como te odiei por me teres dado exactamente aquilo que precisava.
Como te odiei por seres o oposto do que esperava.

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