segunda-feira, junho 28, 2010

A minha angústia

Límpidas, as nuvens vêm do lado do mar e passam por cima de nós em ventos de algodão. Eu fico aqui, ainda aqui estou, e o sol já se pôs no mar, e o sol era um balão incandescente, e o mar era ouro e prata. Com o crepúsculo vem um silêncio de chumbo, um silêncio de séculos marcado de súbitas asas nocturnas e do cântico dos grilos, do coaxar das rãs nos charcos das matas e da dança das folhas em ventanias geladas. É nessa hora que chega a minha angústia. Lenta e sonâmbula, entra pela porta de braços estendidos, como se se tratasse da saudade de um velho amigo. Conheço–lhe os passos, o modo cambaleante de andar e tropeçar nos próprios pés, o contacto dos dedos gelados, sem sangue nas veias que lhe dê vida e calor. Conheço–lhe o rosto, o mesmo que em criança se me atravessava no caminho e me enchia o corpo de arrepios de medo. Conheço–lhe as mãos, as mesmas que nunca largam o que apertam e nos afagam o corpo em carícias moribundas. Conheço–lhe o olhar que me persegue no escuro e nas noites de insónia. Desde criança. Desde criança que a sinto dentro de mim. Agora saiu para fora, inundou o espaço à minha volta e não há crepúsculo em que não me apareça à porta. Cercou a minha casa num abraço de morte, espalhando em redor o perfume das coisas velhas e sem nome. As suas mãos tomaram conta do meu corpo, esse espaço íntimo onde tento preservar a todo o custo o que me resta de lucidez. Porém, já não luto com ela. Rendi–me à sua presença, à sua magia, à sua graça feiticeira. Já não fico acordada, de olhos em transe, numa tentativa desesperada de a expurgar do corpo. Em vez disso, convido–a a entrar, estendo-lhe a mão, sirvo–lhe um copo de whisky. Ela sorri e já não me assusta. Consigo vê-la nitidamente, vislumbro-lhe o rosto e oiço–a falar, tanto que ela me fala, ficamos sentadas noites a fio entre copos e sorrisos cúmplices, enquanto ela me fala da criança que eu perdi. Fala e leva–me até aos dias mais sombrios, às horas mortas, e eu vou, dou–lhe a mão e vou com ela, vou e ela mostra–me aquele rosto de criança, os dias e as noites de pesadelo, o medo entalado na garganta, o susto que me inunda o quarto, vou e agarro-lhe a mão, a mesma que nunca me largou e sempre esteve a meu lado, sólida, firme, uma presença constante, uma parede branca, todos esses anos, ela, a minha angústia.

1 comentário:

Rita Pitada disse...

Lindo... é impressionante como consegues transformar (as tuas angústias) em algo de belo... Obrigada por partilhares a tua escrita com o mundo!